Nota 8 Suspense espanhol surpreende investindo em trama policial com toques sobrenaturais
Enquanto em Hollywood o gênero de terror sobrevive aos trancos e barrancos graças aos filmes sobre seriais killers, casas assombradas e refilmagens de sucesso do passado ou de outros países, é através do sotaque espanhol que nos últimos tempos temos tido a oportunidade de sentir calafrios de verdade. Rec, por exemplo, agradou a crítica, gerou duas sequências, ganhou versão americana e cativou um expressivo grupo de fãs, porém, o criador dessa revolução no cinema não ganhou o mesmo destaque que o nome Guillermo Del Toro. O cineasta mexicano tornou-se famoso no mundo todo após o estrondoso sucesso do original O Labirinto do Fauno e bastou seu nome envolvido na produção de O Orfanato para que certo burburinho fosse gerado e um novo pequeno grande filme surgisse. É uma pena que o mesmo não aconteceu com Os Olhos de Julia, até porque a distribuidora praticamente ignorou o longa. Apesar de algumas situações previsíveis e outras que deixam pontas soltas e dúvidas, no geral, o filme surpreende e garante boas reviravoltas explorando o impacto da perda da visão, talvez o mais importante dos sentidos para os seres humanos, relacionando a uma trama de suspense que pode ou não ser real.
O enredo gira em torno de Julia (Belén Rueda), uma mulher que decide investigar por conta própria às circunstâncias que levaram sua irmã gêmea Sara a se suicidar, porém, ela acredita que a tragédia aconteceu por conta de um assassinato. Assim ela começa a procurar indícios dos últimos atos de sua irmã em vida e quanto mais se aprofunda nas investigações mais se convence de que ocorreu um crime envolvendo outra pessoa e que de alguma maneira isso está ligado à doença degenerativa dos olhos que acabou cegando Sara e que agora já está se manifestando também em Julia. Para completar o pacote desgraça pouca é bobagem um homem misterioso que parece estar perseguindo esta corajosa mulher traz a tona novas dúvidas sobre o caso. Poderia realmente Sara ter se suicidado e Julia estar delirando? Ou as desconfianças da jovem têm fundamentos e é a polícia quem não quer enxergar a verdade? O diretor e roteirista Guillem Morales traça sua narrativa deixando o espectador em cima do muro vivenciando a mesma dúvida que Isaac (Lluís Homar), o marido da protagonista. Estaria Julia sofrendo as consequências do choque provocado pela morte da irmã e do agravamento de sua doença ou realmente existe alguém seguindo cada passo dessa mulher a fim de evitar que evidências e provas sobre a morte de Sara sejam descobertas e apontem para uma nova resolução?
As coisas ficam ainda mais intricadas para Julia quando em determinado momento ela se vê sozinha a mercê da própria sorte. O argumento por si só já garantiria certo destaque ao longa, mas ao receber as bênçãos de Del Toro como produtor a propaganda positiva seria bem maior, o que não explica os motivos pelos quais a distribuidora optou por lançar diretamente ára consumo doméstico e sem o mínimo de divulgação um suspense bem acima da média. É certo que não há indícios que o filme tenha feito uma carreira de sucesso por onde passou, mas é bom lembrar que uma simples peça de marketing poderia trazer excelentes resultados. A imagem em close no rosto de uma mulher com uma venda nos olhos e a sombra de uma pessoa atrás dela seriam o suficientes para aguçar a curiosidade do público, porém, no final das contas poucos tomaram conhecimento da existência desta obra, mas quem arriscou assistir certamente não se decepcionou. Claro que a narrativa não é uma coisa de outro mundo e não está livre de reaproveitar clichês do gênero, mas durante as quase duas horas de duração somos envolvidos por um clima de suspense irresistível que investe em bons momentos de tensão e nos poupa de violência gratuita.
Além de um bom texto e intérpretes, o longa também se beneficia de sua direção de arte, iluminação e fotografia, tudo minuciosamente pesquisado para dar à obra um tom azulado e melancólico que cai como uma luva à produção. A atriz Belén Rueda, também protagonista do citado O Orfanato, tem uma interpretação forte e convincente e convida o espectador a viver junto com a sua personagem a angústia e o medo de estar se envolvendo em uma história cheia de mistérios aonde ela própria chega ao ponto de não distinguir mais o que é realidade ou imaginação, ainda mais quando ela passa por terríveis crises de cegueira momentânea. Ela é uma mulher forte e decidida, chega inclusive a se virar praticamente sozinha mesmo após uma operação dos olhos, mas ainda assim ela não deixa de ter seu lado mais fraco, é quando procura conforto nos braços do marido, este que até pode deixar no ar a sensação de que tem algo a ver com a morte de Sara já que ele acredita que a esposa está estressada com tudo que está passando e inventou a história do assassinato.
É interessante que a partir do momento em que a protagonista é submetida a uma cirurgia e obrigada a ficar com os olhos totalmente vendados, além da aparição de personagens estranhos que não deixam claro se entram em cena para ajudar ou se aproveitar da fragilidade de Julia, o espectador é praticamente forçado a se situar na história como um personagem, um ponto relevante na forma como Morales conduz seu trabalho de câmera e narrativo. A ousadia é bem vinda e transforma a experiência de assistir Os Olhos de Julia em algo singular e que poucas vezes tivemos o prazer de vivenciar. A certa altura a visão da escuridão, ou melhor, as sensações que Julia tem diante do desconhecido passam a serem as mesmas que o público tem. O bom e velho efeito de transmitir as imagens como se fossem pela ótica do personagem aproximam ainda mais o espectador da trama. É muito bom ver que ainda tem gente que consegue fazer isso de forma mais honesta e usando os recursos básicos para se fazer cinema de qualidade: criatividade e uma boa história em mãos, o resto é firula.
Suspense - 117 min - 2010
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