NOTA 9,0 Cinebiografia de renomado estudioso do sexo surpreende pela forma em que aborda polêmicas |
Quem é esse tal Kinsey? Pouquíssimas pessoas fora do solo
americano e das novas gerações sabiam algo a respeito de Alfred Kinsey até o
lançamento de Kinsey – Vamos Falar de Sexo, mas certamente muita gente, ao
menos em nosso país, se sentiu atraída a conferir esta obra devido a palavra
sexo contida no subtítulo nacional, uma idéia eficiente, porém, ambígua. O
assunto principal do longa são justamente as relações sexuais, mas quem decide
assistir pensando que acompanhará uma história com cenas explícitas e quentes
terá uma grande decepção. Esta é a cinebiografia de um cientista que causou
frisson e polêmicas ao dedicar sua vida profissional a estudar o comportamento
sexual dos seres humanos chegando às áreas mais libidinosas do assunto. O que
era assunto proibido outrora continuava em 2005 pelo jeito. Foi difícil um
estúdio aceitar realizar o projeto e alguns grupos conservadores,
principalmente nos EUA, fizeram campanha contra o longa. Ao contrário de outros
projetos inspirados em fatos reais, não temos aqui a narrativa esquemática em
que é perceptível sabermos de antemão qual estágio da vida do homenageado está
sendo apresentada a cada ato, muito porque pouco ou nada conhecemos dele, mas
também somos poupados do manjado recurso de as últimas cenas serem dedicadas a
esmiuçar os caminhos que cada personagem tomou. A narrativa é entremeada por um
tipo de interrogatório não só colocando na berlinda o protagonista, mas também
pessoas que se submeteram aos seus atípicos estudos sobre o sexo, e também
adota uma estrutura convencional mostrando rapidamente sua juventude, focando
muito mais em seu auge e declínio profissional e felizmente nos poupando de sua
morte ocorrida em 1956, pequenos detalhes que diferem a produção no surrado
campo das cinebiografias. Curiosamente, Kinsey (Liam Neeson) era um ignorante
sobre sexualidade em sua juventude devido ao conservadorismo e puritanismo
imposto por seu pai, o pastor Alfred Seguine Kinsey (John Lithgow), com quem
ele não se relacionava bem. O rapaz era visto com um sonhador ou desocupado
pelo patriarca da família por se dedicar a catalogar espécies de insetos, mais
especificamente vespas, e estudar seus hábitos e comportamentos de vida e de
reprodução. Ele chega a fazer um estudo com milhares destas criaturas e chega a
conclusões relevantes, mas o mundo da biologia não rendia dinheiro e parecia
que nem mesmo os envolvidos se entusiasmavam tanto quanto o jovem professor.
Fazendo valer a máxima de que quem se esforça um dia será
recompensado, os estudos de Kinsey chamam a atenção de uma aluna sua, Clara
(Laura Linney), uma jovem que pouco a pouco conquista o rapaz com sua
curiosidade a respeito do mundo que ele respirava entre outras afinidades. Não
demora muito e eles se casam, mas a relação inicialmente é prejudicada pela
falta de entrosamento na cama. Kinsey é inexperiente e não sabia que tinha um
órgão sexual um tanto avantajado, o que machucava a parceira, assim eles
resolvem procurar ajuda médica. O que era um tabu é rapidamente solucionado e o
biólogo finalmente descobre e se vicia no prazer carnal, mas ele não pensa
nisso apenas para sua satisfação e leva o assunto para o campo profissional,
adaptando os estudos que fez com os insetos para os humanos. Atônito com a
falta de literatura especializada ou com as mentiras discursadas nos poucos
livros e teses publicados, ele resolve na conservadora década de 1940 realizar
um grandioso estudo de observação do comportamento sexual humano com base em
relatos e imagens reais, sempre apoiado pela esposa que demonstra apreciar o
assunto. Seu primeiro livro, “Sexual Behavior in the Human Male”, foi um
estrondoso sucesso quando lançado em 1948, mas o estudioso queria abrir mais o
leque de opções sobre o tema e passou não só a entrevistar e acompanhar homens,
desde adolescentes até maduros. Mulheres, idosos, homossexuais, liberais,
virgens, pedófilos, enfim todos os tipos de seres humanos possíveis serviram
como base de seus estudos. Kinsey sempre tratou a todos com respeito e
profissionalismo, mas após o impacto positivo de seu primeiro livro o fracasso
pegou de surpresa sua carreira. O segundo livro enfocava a vida sexual das
mulheres e gerou polêmicas por infringir as regras dos bons costumes e moldar
um comportamento considerado inadequado para as damas, isso praticamente uma
década antes da data considerada o marco da revolução feminina. Todavia, o
inferno astral de Kinsey já mostrava sinais de que mais cedo ou mais tarde se
manifestaria antes do fracasso de sua pretensiosa coleção de livros. Seus
filhos já o criticavam pelo excesso de liberdade em falar sobre sexo a qualquer
momento do dia e com quem quer que fosse e sua obsessão anormal por este estudo
chamava a atenção.
São certas particularidades da vida do sexólogo que podem
chocar muitas pessoas ainda hoje. Por exemplo, ele próprio se coloca em seu
experimento testando o homossexualismo, assume tal atitude para a esposa e
aceita que a própria prove o sexo fora do casamento com seu assistente, Clyde
(Peter Sarsgaard), o mesmo que o levou para a cama algum tempo antes. O filme
não mostra mais indica que houve um triângulo amoroso às claras, ou melhor, na
mesma casa, tudo em nome da ciência como dizia Kinsey. Laura e Nesson estão
perfeitos vivendo esse casal atípico e que serviria como um verdadeiro estudo
de caso para o professor. Ele demonstra genialidade e entusiasmo quase o tempo
todo, mas também deixa espaço para explorar a loucura velada de seu personagem.
Enquanto isso, sua companheira de cena apresenta-se como uma mulher passiva
embora moderninha, a esposa que obedece o marido em tudo, mas no caso o homem
da relação é bem liberal o que a livra parcialmente das amarras de uma
sociedade conservadora. Mesmo assim, ela tem seus momentos de expressar seu
incômodo com tanta libertinagem, como quando o marido revela sua aventura com
outro homem. Esta história escrita e dirigida por Bill Condon, que já havia
investido no tema sexualidade no aclamado Deuses e Monstros, acerta por fazer
uma boa apresentação dos personagens, apresentar o plot principal de forma elegante
e que não choca tanto quanto o esperado, levantar discussões que mesmo após
décadas ainda são polêmicas e principalmente por mostrar seu protagonista como
um ser humano crível. Jamais Kinsey é elevado a categoria de herói merecedor de
aplausos e tampouco rebaixado a uma vítima de uma sociedade hipócrita, os
caminhos mais comuns das cinebiografias. Simplesmente ele é um homem que trouxe
seus objetivos profissionais para o âmbito pessoal, ou vice-versa, que errou e
acertou várias e várias vezes. Kinsey – Vamos Falar de Sexo toca em assuntos
que ainda são tabus na contemporaneidade e assim se torna uma obra que de certa
forma se comunica perfeitamente com a platéia de hoje em dia. Porém, é uma obra
indicada a quem saiba processar mensagens e aproveitá-las para sua própria vida
caso contrário muita gente sairá por aí fazendo o que quer sem pensar nas
conseqüências. É bem complexa e reflexiva a mensagem do longa e aponta várias
questões a serem discutidas. Viver na castidade é realmente um problema? O
excesso de libido é uma doença? Se os prazeres carnais vividos das mais
diversas maneiras fossem liberados despertariam tanto interesse como quando são
proibidos? Ainda que estejamos em uma época cheia de convenções, a sociedade
está menos conservadora? Só uma coisa é certa: poucas vezes um subtítulo foi
tão empregado quanto neste caso.
Drama – 118 min – 2004
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