Nota 4,0 Provocativo argumento envolvendo ética e limites da tecnologia é desperdiçado
Filmes que abordam tempos futuristas costumam ter suas tramas comprometidas pela distração causada pela direção de arte que tenta fazer projeções de como seriam as cidades daqui alguns e não raramente também adiantar protótipos de bugigangas que poderiam fazer parte do nosso cotidiano. Violação de Privacidade surpreende ao se mostrar uma obra mais sóbria e que não busca deslumbrar e sim propor um debate sobre os limites da tecnologia na vida dos humanos. Escrito e dirigido pelo jordaniano Omar Naim, a obra se passa num futuro no qual algumas pessoas possuem em seu cérebro um implante de memória desde seu nascimento a pedido de seus próprios pais. O artefato registra todos os momentos da vida do indivíduo e após sua morte ele é retirado para que tais imagens sejam editadas em um vídeo para ser exibido a seus parentes e amigos mais próximos em uma cerimônia póstuma chamada de rememória . Alan Hakman (Robin Williams) é o profissional mais gabaritado do ramo, os chamados cutters (oriundo do inglês cut que significa cortar), usando seu talento para preparar filmes que ajudem a redimir o falecido quanto aos erros que cometeu durante a vida. Ele é como um devorador de pecados dos novos tempos, prometendo sigilo absoluto quanto às imagens comprometedoras que terá acesso em troca de um polpudo pagamento.
Hakman faz seu trabalho em parceria com alguma pessoa próxima ao falecido que é encarregada de fazer a seleção das melhores memórias desde o seu nascimento até suas últimas horas de vida, assim traumas, momentos desagradáveis e ações que condenem o caráter do homenageado são limados da edição. Tal limpeza de imagem obviamente é um luxo para poucos, não por acaso os falecidos geralmente enriqueceram de formas torpes e desejam levar seus segredos para o túmulo, assim o montador e seus clientes são constantemente alvos de críticas e protestos de pessoas que defendem a ideia que nenhum ser humano tem o direito ou o poder de absolver os pecados de alguém sem que o mesmo tenha se arrependido quando estava vivo. Contudo, Hakman só vai sentir o real peso de seu trabalho quando ele se vê envolvido nas memórias contidas no chip de Charles Bannister (Michael John Smith), um dos executivos da empresa que criou tal tecnologia. É quando ele decide iniciar por conta própria uma investigação sobre o passado dessa pessoa em uma tentativa pessoal de conseguir sua redenção por conta de um erro que cometeu. Ele acreditava ter provocado a morte de um colega na infância, mas o reconhece adulto nos registros do chip do magnata.
Famoso por papeis em comédias e dramas leves e edificantes, Williams na época estava incomodado com as críticas que vinha recebendo por ter se acomodado e buscava explorar outros gêneros e perfis. O ator acabou escolhendo um personagem e um roteiro com certas semelhanças com outro trabalho que estrelou pouco tempo antes. Em Retratos de Uma Obsessão ele interpreta um atormentado revelador de fotografias que fica obcecado por uma família que conheceu por imagens e passa a persegui-la. Ambas as produções tratam de temas importantes e atemporais, como ética e responsabilidade social, e conseguiram colocar o astro de sorriso largo e olhar inocente na posição de vilão. Hakman também é um voyeur que acaba obcecado por um de seus clientes, ainda que tenha a desculpa que seja para ele próprio buscar seu perdão ainda em vida. A situação se complica ainda mais quando Fletcher (Jim Caviezel), um ex-editor de memórias, lidera um movimento popular de resistência a tal atividade e fica no encalço de Hakman, porém, na verdade ele deseja para si os registros de um chip em específico. O filme então revela-se provocativo, capaz de suscitar acaloradas discussões, no entanto, passou em brancas nuvens quando lançado e não gerou interesse com o passar dos anos mesmo com a tecnologia sendo cada vez mais presente e invasiva no cotidiano dos humanos.
Você conseguiria agir naturalmente no seu dia-a-dia sabendo que que todos os seus atos estão sendo registrados? E acharia justo alguém ter uma vida cheia de excessos e erros e após sua morte ter sua imagem alterada positivamente para evitar constrangimentos aos familiares e amigos mais próximos? Infelizmente, Naim não consegue estabelecer bases sólidas para tais questões instigarem o espectador. Nem o próprio elenco parece compreender direito a trama e tocam seus personagens com a mão no freio. Com a melancólica morte de Williams dez anos após as filmagens (ele se suicidou) é possível compreender que o ator não era muito inclinado a temas filosóficos sobre vida e morte e provavelmente fazer parte desta trama deve ter mexido com seu emocional e psicológico, o que justificaria a entrega de um personagem apenas mediano frente a carga emocional que o mesmo pedia. Hakman viveu consumido pela culpa de um erro do passado e procurou uma profissão na qual de certa forma buscava seu próprio perdão, mas com o ônus de carregar as memórias negativas de centenas de pessoas até as levá-las consigo para o túmulo literalmente. Um dos requisitos básicos para ser cutter é não ter tido o chip implantado para que os registros comprometedores dos clientes não sejam redescobertos futuramente.
Violação de Privacidade carece de clímax. A trama se desenvolve de forma lenta e nada de muito interessante acontece. Até o final é fraco colocando Hakman na posição de uma espécie de mártir. Para um enredo funcionar é essencial que ele ela consiga fazer quem assiste se questionar e a tomar uma posição sobre o assunto, mas infelizmente este filme não oferece elementos suficientes para nos envolvermos a ponto de defendermos ou condenarmos as atitudes do protagonista e de seu ofício. Simplesmente acompanhamos com certo tédio a busca do cutter pela verdade sobre seu passado e para se livrar da perseguição do insosso Fletcher. A subtrama policial é descartável e consome preciosos minutos que poderiam ser usados para aprofundar indagações sobre a tal tecnologia que permite as rememórias. No filme tudo parece muito agradável e emocionante aos olhos dos convidados das cerimônias de despedidas dos falecidos, com direito a viúvas com semblantes cândidos e expressões que revelam alívio por saberem que suas imagens não serão arruinadas. Vícios, crimes, traições e talvez até mortes. Seria justo uma pessoa viver sem regras sabendo que ao final da vida todos os seus erros seriam simplesmente deletados? Naim tinha um grande trunfo nas mãos, mas desperdiçou por talvez nem ele próprio ter uma opinião formada sobre o assunto.
Suspense - 95 min - 2004
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Este espaço está aberto para você colocar suas críticas ao filme em questão do post. Por favor, escreva o que achou, conte detalhes, quero saber sua opinião. E não esqueça de colocar a sua avaliação do filme no final (Ruim, Regular, Bom ou Excelente).