Pode se dizer que George A. Romero é o pai dos filmes de
zumbis, tendo dirigido uma cultuada trilogia iniciada em 1968 com A
Noite dos Mortos Vivos e seguida por O Despertar dos Mortos e O
Dia dos Mortos, lançados um por década seguinte. À época o mundo estava
mergulhado em guerras e conflitos raciais e parece que pouca coisa ou
absolutamente nada mudou com o passar do tempo, assim a metáfora do diretor, os
zumbis em choque com os dogmas sociais, manteve-se sempre atual. Os anos 1990
pode-se dizer que também teve seu exemplar da seara com a refilmagem do
primeiro filme de Romero, mas desta vez o pai das criaturas apenas assinou como
produtor executivo. Para não quebrar a corrente, ainda que outras produções
tenham abordado a temática ao longo dos anos, em 2005 o diretor resolveu sair
de sua aposentadoria para trazer mais uma vez os defuntos de volta à vida
em Terra dos Mortos, só que agora eles não são apenas corpos decrépitos e
fétidos que andam cambaleando por aí em busca de cérebros e carne humana. Neste
retorno eles demonstram certo raciocínio e são capazes de fazerem uso de
algumas ferramentas, assim tornando-se muito mais ameaçadores. Liderados pelo
morto-vivo apelidado de Big Daddy (Eugene Clark), os cadáveres começam a
compreender o medo que despertam e a utilizar essa inteligência como
forma de buscar vingança contra a opressão dos humanos, estes que já estão no
planeta em número irrisório.
Para ter noção da situação, o diretor opta por trazer o
conflito para um microcosmo onde as espécies são separadas por muros e a
segregação dentro da área protegida é ainda mais evidente, um modelo que remete
aos tempos da Idade Média com suas organizações feudais, mas cujo embasamento
ainda se faz presente nas sociedades. A cidade em questão é comandada pelo
truculento Sr. Kaufmann (Dennis Hopper), um dos ricaços que moram em prédios
luxuosos e com total estrutura de segurança enquanto as classes mais baixas
vivem em situações vulneráveis e ficam com o trabalho pesado de manter as ruas
limpas e buscar mantimentos para todos, assim se expondo ao perigo. Os zumbis
assumem a posição de representantes do terceiro mundo, que acompanham
impassíveis ao extermínio dos seus enquanto os recursos de suas cidades são
extraídos. Eles vivem à margem da cidade dos humanos, uma região abandonada
onde os cadáveres parecem realizar tarefas do cotidiano de quando ainda eram
vivos, situações que rendem algumas risadas. Contudo, a realidade costumeira
apresentada pelo diretor está ainda mais macabra e caótica. É retratada a
banalização da violência, por exemplo, através de um parque temático no qual as
pessoas podem tirar fotos com zumbis acorrentados, praticam lutas com as
criaturas, entre outras atividade de diversão que expõem os mortos-vivos ao
ridículo, além de os explorar para gerar renda. Dessa forma é até possível
compreender o desejo deles em dominar o mundo e estabelecer a desordem a fim de
enfraquecer o poder de dominação humana.
No grupo dos justiceiros vivos destacam-se o valentão e mercenário Riley (Simon Baker), o latino ambicioso Cholo (John Leguizamo) e a prostituta Slack (Asia Argento) devidamente treinada para combates. Todos eles são vítimas da tirania de Kaufmann, que financia negócios ilícitos na cidade e os explora sem dó, e se reúnem com outros rebeldes para formar um grupo para desmantelar o conglomerado da elite deixando-a à mercê da sorte enquanto eles tentam a vida em algum lugar onde o avanço dos zumbis é mais moderado. Hopper assumiu ter se inspirado no perfil de Donald Trump, na época mais famoso por ter apresentado um programa de TV no qual já demonstrava sua empáfia e arrogância que seriam ainda mais infladas no futuro ao se tornar presidente dos EUA. Assim, o personagem ocupa um espaço nobre e de poder em uma narrativa que faz uma crítica social a desigualdade de classes e ao imperialismo usando uma situação alegórica, mas de fácil identificação com a vida real. A força do dinheiro para ditar regras sociais é um ponto muito forte no roteiro escrito pelo próprio Romero. Mesmo com a cidade em ruínas, os ricos ainda fazem questão de ostentação e usufruem ao máximos dos bens materiais que adquirem dos pobres em troca de ninharias. Estes, por sua vez, se contentam com migalhas porque no atual estágio das coisas eles não enxergam oportunidades de melhoria de vida. O negócio é literalmente matar um leão por dia para sobreviver, ou melhor, um zumbi ou vários deles para conseguirem seus suprimentos.
Graças a um orçamento mais polpudo, na verdade uma merreca para os padrões de Hollywood, mas uma fortuna para um diretor acostumado a trabalhar com pouco, Romero realiza aqui seu filme mais bem elaborado contando com cenários imponentes e recursos tecnológicos de ponta, mas o clima de cinema marginal continua dando a tônica. Apesar do realismo buscado na crítica implícita, o roteiro tem seus furos e delírios. As riquezas materiais, digamos assim, precisam ser buscadas no território inimigo, mas os defuntos não produzem absolutamente nada e os humanos da classe baixa, mesmo escravizados, não tem condições financeiras para trabalharem na produção de bens de consumo. Como o modelo social imposto pelo Sr. Kaufmann e outros ricaços se sustenta é uma incógnita, mas os questionamentos lógicos certamente não são prioridades para o público-alvo da fita ávido por muita violência e gore e nesses quesitos Romero mostra que não enferrujou. Os zumbis dominam o filme de ponta a ponta e é muito mais fácil criar empatia por eles do que pelos estereótipos representados pelos humanos. O cineasta explora ao máximo os recursos técnicos possíveis e isso fica bastante evidente na caracterização dos seres decrépitos. A maquiagem e os efeitos especiais são de primeira, colocando em cena muito sangue e corpos em decomposição críveis longe da memória das figuras involuntariamente engraçadas que costumam pintar em fitas do gênero.
Em participação afetiva, entre os
zumbis estão o ator Simon Pegg e o diretor Edgar Wright, ambos da
comédia-homenagem Todo Mundo Quase Morto, e também o cineasta e
maquiador Tom Savini, o responsável pela refilmagem de A Noite dos
Mortos Vivos. Curiosamente, na visão de Romero, os mortos revelam-se mais
dignos e honestos nesta concepção de futuro que reflete o receio da civilização
moderna em abrir espaço para quem é diferente ou não tem posses. Terra dos Mortos escancara
o medo e preconceito impregnados na cultura das sociedades divididas por
classes através de uma fantasia violenta, mórbida e divertida. A fórmula
zumbis, pancadaria e crítica social mais uma vez prova que funciona quando
trabalhada pelas mãos certas, de quem entende do assunto e respeita as
convenções do gênero. Embora o filme não tenha feito um sucesso estrondoso,
serviu para colocar o nome de Romero de volta sob os holofotes, tanto que o
animou a formar uma nova trilogia com Diário dos Mortos e Ilha
dos Mortos, lançados respectivamente com a diferença de apenas dois anos
entre um e outro. Infelizmente, nenhum chegou a causar o menor ruído em
comparação a sua antiga saga, mostrando que o público do século 21, ao menos de
seu primeiro tempo, não estava preparado para a conversa proposta pela obra de
Romero.
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