O título Florence - Quem é Essa Mulher? já
evoca a necessidade do filme em elucidar a identidade da homenageada, a cantora
Florence Foster Jenkins, na verdade uma milionária apaixonada por música que se
aventura em apresentações de ópera, porém, sem o menor talento para tanto. Por
coincidência, praticamente simultaneamente foi lançado o francês Marguerite, mais uma obra dedicada a
fazer a biografia da excêntrica senhora, mas com a versão inglesa tendo Meryl
Streep no papel-título obviamente ela acabou ofuscando a concorrente, ainda que a fita provavelmente só teve um pouco mais
de projeção devido a atriz mais uma vez ser nomeada a diversos prêmios,
incluindo o Oscar. De fato, a veterana entrega um trabalho excepcional de
composição psicológica, emocional e visual de Florence que, por compaixão, é
encorajada por quem a cerca a investir na carreira musical e o filme trata de
colocá-la na posição de heroína ao mesmo tempo que aproveita o potencial cômico
desta história real e inspiradora. O roteiro de Nicholas Martin tem como fio
condutor a relação da protagonista com seu marido, St. Clair Bayfield (Hugh
Grant), um ator sem talento cujo trabalho se resume a pequenos monólogos
apresentados antes dos recitais da esposa. Eles na verdade vivem um casamento
de aparências e o bon vivant passa suas noites na companhia de Kathleen (Rebecca Ferguson), uma jovem atriz boêmia que o visita constantemente no
apartamento em que ele vive bancado por Florence. Tudo funciona de certo modo
em comum acordo. Por respeito, ele faz de tudo para a mulher não flagrá-lo com
outra e ela, por sua vez, se faz de inocente, mas no fundo sabe muito bem que o
marido não é nenhum casto.
A rica
senhora também não exige fidelidade, pois não pode oferecer prazer sexual ao
companheiro já que contraiu sífilis em seu primeiro casamento e desde então
sofre com dores e males diversos. Essa relação peculiar, bem como o cotidiano
dos ricos e influentes que cercam Florence, é acompanhado de perto por Cosmé
McCoon (Simon Helberg), um jovem pianista que aceita o desafio de colaborar com
a aspirante a cantora fazendo os arranjos musicais para seus ensaios e
apresentações. Ciente do quanto lhe pode ser proveitoso fazer parte desse
pequeno universo de aparências e onde o dinheiro dita as regras, ele acaba
servindo como uma espécie de confidente para ela e ao mesmo tempo faz a ponte
para que através das conversas entre eles o espectador descubra detalhes do
passado da milionária. O diretor Stephen Frears deixa de lado o lado obscuro de
suas outras cinebiografias femininas, como A Rainha e Philomena,
para então construir uma comédia leve e acessível. Para tanto, investe numa
interpretação mais simples das relações de classes, assim fica claro quem são
os bonzinhos e os malvados, os perversos e os ingênuos. Quando alguém debocha
do canto de Florence é preciso que a pessoa literalmente caia e role no chão de
tanto rir para ficar bem claro sua índole, assim como quando alguém a apoia ela
deve se levantar da cadeira no meio de um concerto para pedir respeito e dar
lição de moral aos outros em alto e bom som.
Com certa familiaridade com O Discurso do Rei, no qual um monarca tinha dificuldades para falar em público, embora neste caso a aspirante a soprano não tivesse o menor senso de ridículo, a questão primordial das duas obras é mostrar o que um ser humano é capaz de fazer para superar obstáculos em busca de um objetivo. Diferente da gagueira do personagem de Colin Firth no longa citado, que fora solucionada aos poucos com aulas de oratória, a cantoria inaudível de Florence era suportada à base de alguns punhados de dólares dados como presente para os que a cercavam, uma forma encontrada por seu marido simplesmente para saciar o ego da esposa. Claro que nem tudo por amor. Se ela estava feliz, certamente estaria disposta a continuar bancando os luxos de seu companheiro. Blindá-la da realidade dos fatos e da crueldade dos seres humanos torna-se um pouco mais complicado quando surge a oportunidade de um concerto público em uma renomada casa de espetáculos, o que certamente iria a expor de uma maneira mais abrangente e perigosa em termos de repercussão midiática. O roteiro basicamente gira em torno da preparação e expectativa para esta apresentação, mas quebra o tom dramático dando certa aura de contos de fadas ao episódio que ganha um agradável tom lúdico. O texto é eficiente ao construir uma figura de um espécie de heroína, mesmo que através da ridicularização e do constrangimento. A trama é facilitada pelo didatismo com que é conduzida. Ao invés de confrontar a paixão pela música da protagonista com o real sentido do que é arte, Martin debruça-se sobre aspectos de compreensão universais para aumentar o potencial emotivo, assim nos compadecemos do estado de saúde Florence e compactuamos com sua forma de viver o amor.
Streep empresta seu talento e carisma para compor uma figura comum, mas ao mesmo tempo brilhante. Ela é capaz de nos fazer acreditar que Florence poderia até cometer a loucura de abrir mão de sua fortuna em troca da possibilidade de construir uma carreira como cantora, afinal a música é o que a faz desejar estar viva. Mesmo o espectador tendo conhecimento de sua pouca aptidão, ainda assim fica na torcida pela personagem que comove com seu entusiasmo e certa inocência. O talento vocal da atriz já pôde ser conferido em outras ocasiões, assim certamente ela precisou ter muita concentração para desafinar sem peso na consciência, mas nada de muito sacrificante para alguém conhecida pela forma detalhada e dedicada que compõe suas personagens. Apesar de protagonizar diversos momentos cômicos, Streep interpreta com a seriedade e objetividade que a própria Florence encarava as situações, o que justifica o por quê de ela mesma não perceber suas limitações vocais. Já Grant há tempos não tinha um papel de destaque e empresta seu estilo charmoso atrapalhado conhecido de tantas comédias românticas, ainda que neste caso mais comedido, para criar de fato um bom coadjuvante, pois aparentemente foi esse o papel de Bayfield na vida da homenageada. Estava ao seu lado para protegê-la e apagar incêndios, mas é visível o carinho que nutria pela esposa e seu empenho para que ela brilhasse nos palcos.
A maior surpresa, no entanto, é quanto o desempenho de Helberg que faz uma excelente composição flertando com o caricato propositalmente , afinal cabe a ele aguentar diariamente a sinfonia desafinada de sua aluna, mas segurar seus ímpetos para não deixar o sonho dela morrer. A amizade sincera que surge entre eles é o que de fato humanizada este trabalho aos moldes narrativos de um clássico de época aproveitando-se da ação transcorrer da nostálgica e boêmia década de 1940. Dos requintados cenários aos figurinos escandalosos da protagonista, tudo impressiona pela beleza e riqueza de detalhes exaltados pela excelente fotografia, destacando-se ainda as divertidas cenas dos ensaios da soprano agregadas a uma técnica de montagem que simulam o movimento de virada de páginas de livros para cada mudança de take. O objetivo de Florence - Quem é Essa Mulher?, assim como a de sua protagonista, é colocar um sorriso no rosto do espectador, ainda que faça uma crítica ao triste fato da sociedade viver de aparências, especialmente quando se tem dinheiro em jogo para manter a hipocrisia. A homenageada não marcou a História, mas sua perseverança e amor pela música tornam sua trajetória muito mais importante que seu legado artístico e justificam esta cinebiografia.
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