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terça-feira, 5 de julho de 2022

GRANDES OLHOS


Nota 9,0 Longa aborda relação de casal de artistas plásticos baseada em submissão e mentiras

A expressão popular que diz que atrás de um grande homem sempre existe uma grande mulher parece inspirada na história de Walter Keane e Margareth Ulbrich. Quem são eles? De fato, seus nomes não são muito famosos, mas no passado com certeza figuraram nas páginas de jornais, mais precisamente nas seções policiais. Grandes Olhos retrata a trajetória pessoal e profissional destes artistas plásticos a partir do momento que iniciam uma relação marcada por interesses, mas ainda assim com certo romantismo que aos poucos cedeu espaço ao egocentrismo dele e a anulação da mulher. A trama se desenvolve a partir de meados da década de 1950 quando Margareth (Amy Adams), fugindo do marido junto com a filha pequena, decide recomeçar sua vida em outra cidade. Com um talento peculiar para desenhar figuras humanas, principalmente crianças, sempre dotadas de grandes olhos que revelavam certa tristeza, contudo, seu trabalho não era valorizado e assim se contentava em pintar decorações em móveis e a ganhar alguns poucos trocados fazendo retratos em feiras. Em uma delas acaba conhecendo o carismático Keane (Christoph Waltz), que também não tinha sucesso vendendo seus quadros de cenários parisienses. Os dois acabam se apaixonando e se casam rapidamente para que ela não perdesse a guarda da filha provando ter condições para criá-la em um ambiente familiar. No início tentam ajudar um ao outro, mas tudo era muito difícil e humilhante, com o casal chegando a alugar paredes de um clube noturno para poderem expor seus trabalhos, mas as pessoas passavam batidas pelas obras de arte e quando as viam costumavam zombar, principalmente das pinturas de Margareth.

Quando finalmente alguém se interessa em adquirir uma imagem com os tais grandes olhos, Keane, embriagado, acaba assumindo a autoria do quadro. A partir deste momento ele propõe a esposa que ela faça as pinturas e ele as assine justificando que havia preconceito com o trabalho de artistas mulheres. Apaixonada pelo marido e decepcionada com sua carreira, Margareth acaba aceitando a ideia e durante um bom tempo aparentemente mostrava-se satisfeita com a situação, mas tudo muda quando o sucesso sobe à cabeça de Keane. Ainda que as vendas de quadros não atinjam um nível satisfatório, Keane com seu astuto olhar empresarial descobre uma forma de multiplicar seus lucros vendendo réplicas em forma de pôsteres, cartões, pratos decorativos, canecas e tudo o mais que pudesse ser estampando com as imagens das crianças de grandes olhos. É nesse momento que Margareth toma conhecimento do potencial de seu trabalho e que deixou desperdiçar, mas ainda assim sabe que precisaria do marido para continuar a dar uma boa vida para filha, pois ele detinha o tino comercial. Quando tenta em paralelo firmar seu próprio nome com um novo tipo de pintura, pessoas com olhos mais fechados e expressando certo cansaço e desânimo, reflexos de seu próprio estado emocional, ela percebe o egoísmo do marido que disputando preferências de compras, espaços em exposições e, principalmente, espaço na mídia, sempre dava um jeito de diminuir o trabalho da esposa e quando possível escondê-lo.

A farsa começa a desmoronar quando Keane deseja a todo custo expor em um importante evento focado em educação e direitos infantis e exige que a esposa faça a maior e mais ambiciosa de suas telas retratando rostos de crianças de diversas nacionalidades marchando como se estivessem rumo a um futuro sem esperanças, contudo, a obra acaba sendo duramente julgada por John Canaday (Terence Stamp), um renomado crítico, que pública um artigo rotulando o painel como a própria definição do mal gosto e uma criação sem alma ou aspiração artística, algo como um produto feito sob encomenda. Se a essa altura o casamento já estava mal, o episódio foi a gota d’água para Margareth resolver mais uma vez se separar e depois de um tempo revelar ser a autora das pinturas dos grandes olhos, assim travando uma batalha na justiça para ter seu trabalho finalmente reconhecido. Revelar o ponto de decadência do artista não é spoiler algum, qualquer busca por seu nome na internet pode revelar tais detalhes. E outra, os roteiristas Scott Alexander e Larry Karaszewski não acompanham o desenrolar dos fatos pela visão dos protagonistas apenas como figuras públicas, mas invadem suas intimidades deixando claro desde o início o pacto do casal, assim já sabemos que mais cedo ou mais tarde a verdade virá a tona, caso contrário não haveria motivos para o filme existir.

O interessante é acompanhar a relação íntima dos protagonistas em paralelo a continuidade da farsa até sua revelação, ainda que Keane a defendesse sem sucesso até falecer enquanto Margareth continuou pintando, mas nunca chegou a ser um expressivo nome do ramo, pois sua arte não fazia parte de um movimento em específico e considerada, no fundo, desprovida de originalidade ou grandes técnicas. Desde a infância, devido a um problema passageiro de audição, ela se acostumou a usar seus olhos para tentar compreender o mundo e, a julgar por seus quadros, sua visão sempre foi um tanto melancólica. Colecionador de obras de Keane, ou melhor dos trabalhos de Margareth, Tim Burton encarregou-se de filmar esta história real bastante peculiar. Conhecido por filmes com temáticas fantásticas, estranhas e não raramente góticas, nos últimos tempos o diretor vinha exagerando na dose de espetáculo, assim é bastante interessante o ter no comando de um drama simples e com certo quê de produção independente. Todavia, o material não foge completamente do universo ao qual está acostumado, ainda que nitidamente só percebemos a assinatura do diretor em uma ou outra cena quando Margareth enxerga os grandes e tristes olhos nas pessoas reais, inclusive nela mesma, o primeiro sinal de alerta para a submissão que a cegou. Grandes Olhos aborda uma história protagonizada por pessoas, de certa forma, fora dos padrões. Keane, ao que tudo indica, era um homem charmoso e de lábia, mas Waltz o representa com propositais exageros. Não conseguimos enxergar o personagem como um vilão e sim ter pena dele, ainda que jamais nos posicionamos a seu favor. Facilmente o rotulamos como alguém patético ou perturbado e que teve a sorte de encontrar uma companheira ludibriável e já bastante reprimida por convenções sociais. Inicialmente, parece haver sentimentos verdadeiros por parte dele, mas os mesmos são suplantados conforme sua ganância e orgulho crescem.


Já Adams passa praticamente metade do filme como uma coadjuvante por conta do perfil da personagem, mas depois dá uma guinada. Nesse ponto o filme se renova apresentando uma Margareth mais segura e empenhada a provar sua independência através de seu trabalho, ainda que se apegue a conselhos de numerologia ou religiosos como forma de incentivo. Submissa ou empoderada, o fato é que a personagem é o que segura a atenção equilibrando a narrativa, embora fosse um perfil bastante complexo e que poderia ser melhor explorado. Para não ser um filme muito longo, infelizmente a edição mostra-se apressada, principalmente quanto ao desenvolvimento inicial da relação dos artistas. Seguindo a cronologia das situações, Burton apenas pincela alguns fatos de suas vidas quase seguindo uma linha de raciocínio jornalística. Ainda que seja uma produção sem grande criatividade narrativa e deixe o gostinho de quero mais quanto a exploração do estilo da pintora, é uma obra bastante agradável e acima da média quando levamos em consideração os últimos e questionáveis trabalhos de Burton. 


Drama - 106 min - 2014

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