Nos
últimos anos muitos pequenos filmes de horror ganharam projeção como A
Visita, A Bruxa e Hereditário, mas curiosamente outras
produções tão boas quanto encontram dificuldades para chegarem a ser exibidos
nos cinemas, mas felizmente, na ausência das locadoras físicas, os serviços de
streaming estão dando visibilidade a essas pérolas do gênero. Oferecido pela
Netflix, O Babadook conta a
história de Amelia (Essie Davis) que vive sozinha com o filho pequeno Sam (Noah
Wiseman) em uma casa antiga e muito escura. Atormentada pela morte do marido,
esta mulher jamais se permitiu viver seu luto, mas progressivamente foi
definhando e tendo seu estado emocional cada vez mais abalado, principalmente
porque o garoto está sempre repercutindo lembranças do pai e fazendo questão de
ressaltar que o falecido foi vítima de um acidente enquanto levava a mãe para o
hospital para dar a luz. O menino tem um perfil bastante problemático mesclando
atos violentos a outros de histeria, perturbando ainda mais sua mãe que na
ânsia de protegê-lo de qualquer temor vai pouco a pouco se afastando do
trabalho e do convívio social. A situação só piora quando Sam pede à mãe para
lhe contar a história do Badabook, um livro que encontrou sem assinatura do
autor e tampouco sinopse.
O
menino já tinha pesadelos constantemente com um monstro e ao ver as ilustrações
passa a achar que o personagem da publicação é o mesmo de seus sonhos e que vai
matar Amelia. Ele então passa a agir irracionalmente na intenção de proteger a
mãe e a si mesmo diante de eventos que ambos não conseguem compreender. A
entidade abordada na publicação pode representar uma perturbação imaginária que
se manifesta aproveitando-se do estado emocional abalado de mãe e filho, mas a
condução do longa também não descarta a hipótese da presença de algo paranormal
na casa deles que por si só já carrega uma aura bastante negativa. A diretora
Jennifer kent ampliou o universo que criou e dirigiu para um
curta-metragem lançado cerca de uma década antes e, fantasiosa ou real, a
existência da criatura é um ponto de discussão comum nas duas obras, mas no
longa é adicionado todo um contexto a fim de explicar as origens do terror
psicológico que abala os personagens. O desenvolvimento da trama oferece apenas
indícios do que está acontecendo e demora a mostrar o tal monstro que aos
poucos revela ter muito mais a contar sobre a família que persegue ao invés de
simplesmente assustá-la. Anagrama de "a bad book", que significa um
livro mau, o Babadook tem forma e rostos assustadores, mas a maneira como Kent
decide articular sua presença faz toda a diferença.
Ao manifestar o monstro em vários personagens e em diferentes momentos da trama, forma-se um ambiente instável no qual pessoas estão contra pessoas, assim o terror ganha proporções ilimitadas. Quando em sua real forma, a sombra que o mostro projeta ao abrir seus braços e levantar sua capa é grande o bastante para encobrir vidas inteiras, desnorteando julgamentos e embaraçando os próprios reflexos. Dessa forma, mãe e filho encontram-se em embate a fim de expurgar seus traumas ou até mesmo anularem a si mesmos. Seus corpos personificam a atmosfera do filme. No início, parecem vacilantes, ainda que dotados de certa estabilidade. No meio, já soam mais sombrios e instáveis. Ao final, estão entregues aos gritos e barbárie, viscerais ao ponto da deformidade. Em uma análise simplória, o Babadook seria a representação dos medos infantis acentuados por traumas, algo semelhante ao pavor do bicho-papão. Uma segunda leitura soa bem mais interessante ao mostrar a criatura como reflexo da vida sem sentido de uma mulher confusa, traumatizada pela perda do marido, infeliz no trabalho e ainda tendo que lidar com um filho problemático, uma somatória de fatores que a faz ser vítima de suas próprias fobias.
O entrosamento entre os protagonistas é muito importante para a sustentação da trama na qual boa parte do tempo seus personagens se evitam, embora compartilhem características apáticas. Davis tem todo o cuidado para compor uma mulher fria, mas ao mesmo tempo que se preocupa com seu único filho e o tem como sua única razão para ainda viver. O jovem Wiseman também surpreende como um garoto perturbado e suas reações de medo são convincentes e por vezes assustadoras. A abordagem principal do enredo é sobre o processo de perdão entre mãe e filho, o que justifica o grande tempo inicial gasto para ficarmos íntimos dos dois e de suas rotinas e conflitos. O elenco enxuto, praticamente o uso de um cenário apenas e, principalmente, a história centrada mais nas reações dos personagens do que nas explicações dos eventos que os acometem, O Bababook revela-se um filme maduro e bem estruturado, calcado em uma montagem econômica e velhas trucagens práticas de filmagem, o que deixa a obra bem mais assustadora. Kent utiliza com sabedoria os espaços da casa e posiciona sua câmera de forma a sempre deixar no ar a suspeita de que algo inesperado poderá acontecer, aproveitando que os protagonistas tem como hábito verificar os possíveis esconderijos da criatura. Debaixo da cama, dentro do armário ou atrás de uma porta, seja onde for, a diretora posiciona seu foco como se o monstro estivesse observando suas vítimas enquanto elas o procuram. Igualmente eficaz é o uso dos efeitos sonoros, com destaque ao tenebroso gemido do monstro que certamente não irá sair da cabeça do espectador tão cedo.
Aos mais entendidos de estética cinematográfica, ficará nítida a influência do expressionismo alemão na composição das cenas e a diretora também foge do padrão comum ao adotar um ritmo mais lento para a narrativa. Uma das maiores dificuldades de uma produção de suspense ou terror é manter a tensão, principalmente quando o Mal revela sua forma prematuramente. Isso exige o confronto imediato do herói contra seus medos, o que gera muitas idas e vindas, mas Kent segura ao máximo a revelação do personagem-título, mantendo sua presença onipresente, porém, invisível ou encontrando maneiras escamoteadas para colocá-lo em cena. A edição seca e abrupta também se faz indispensável. De uma cena tensão para outra o corte é feito com objetividade, assim evitando entregar os sustos com elevação de efeitos sonoros ou relances de câmera. Pode-se dizer que além de amedrontadora, esta produção tem o mérito de ser bastante experimental, usando e abusando da criatividade e fugindo de obviedades. Com menos personagens para serem limados ao longo da fita. assim como a economia de firulas, sobra mais tempo para explorar sentimentos próprios do subconsciente humano, como o medo do escuro, do desconhecido e de encarar seus problemas para não sofrer.
Terror - 95 min - 2014
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