NOTA 7,5 Visualmente belo e com elenco afiado, adaptação de obra clássica derrapa ao ser fiel demais ao texto original, mantendo o tom rebuscado |
William Shakespeare escreveu suas obras para o teatro
visando um entretenimento de aura única. Cada vez que alguém assistisse uma
peça sua viveria uma emoção diferente dependendo de seu estado de espírito,
quem estivesse na plateia e até mesmo o envolvimento do elenco com o trabalho
no dia. Já o cinema tratou de massificar suas obras, ou seja, levá-las a uma
quantidade de público muito maior e que teoricamente dividiria as mesmas
percepções inúmeras vezes, afinal o conteúdo estaria registrado em uma versão
única. Bobagem! Embora estudiosos de artes e filosofias afirmem que a
massificação da cultura padroniza emoções e tira o brilho dos trabalhos, a
verdade é que um filme pode sim gerar diversas interpretações e sensações mesmo
sendo para todos os efeitos um registro intocável. Por exemplo, como teria sido
a adaptação de Sonho de Uma Noite de Verão lançada em 1999 caso o projeto
estivesse nas mãos do cineasta Kenneth Branagh, especialista no universo
shakespeariano? A julgar por suas elogiadas versões de Hamlet e Muito Barulho
Por Nada talvez o projeto tivesse conquistado seus objetivos de encantar
crítica e público, mas o diretor e roteirista Michael Hoffman infelizmente não
obteve sucesso talvez pelo medo de desrespeitar o legado do mestre literário e
se ater a simplesmente fazer um teatro filmado, mas com apuro técnico e visual
invejáveis. O roteiro traz três histórias diferentes que se cruzam. A primeira
é protagonizada por Hermia (Anna Friel), filha de nobres que foi prometida para
Demetrius (Christian Bale), mas ela está apaixonada por Lisandro (Dominic West),
rapaz reprovado pelo pai dela, Teseu (David Strathairn). Para viverem o amor
proibido, os jovens planejam fugir com a ajuda de Helena (Calista Flockhart), a
melhor amiga da jovem. A moça é justamente apaixonada pelo pretendente rejeitado,
porém, o rapaz não dá a menor bola para as suas insistentes declarações de
amor. Por uma confusão, o quarteto vai parar na floresta onde a segunda trama se
desenvolve mostrando um grupo de trabalhadores que está em meio aos ensaios de
uma peça teatral liderados pelo tecelão Nick Bottom (Kevin Kline).
Por fim, o terceiro e mais fantasioso gancho apresenta o
desentendimento entre o rei dos duendes Oberon (Rupert Everett) e Titania
(Michelle Pfeiffer), a rainha das fadas, tudo porque ela está se dedicando a
cuidar de um menino indiano do qual ele não gosta. Para dar uma lição nela, o elfo
arma um plano com Robin Gooffellows, também conhecido como Puck (Stanley
Tucci), um duende trapalhão. O que fará com que os caminhos de todos esses
personagens se cruzem são as trapalhadas de um cupido e suas flechas encantadas
cujos corações tocados não serão correspondidos exatamente por quem se
esperava. Lançado na mesma época do
polêmico Clube da Luta e tendo que lutar por espaço nos cinemas em meio a
avalanche de fitas sobre o fim do mundo e temas demoníacos que se aproveitaram
do medo do tal bug do milênio, infelizmente esta comédia romântica leve e
onírica passou em brancas nuvens. A obra já havia ganho uma famosa versão
cinematográfica na década de 1930 e inspirou outros diversos filmes, peças e
produções de televisão, mas esta adaptação do final do século 20 preferiu se
ater ao texto original evitando descaracterizá-lo tal qual pouco antes Romeu +
Julieta tentou fazer modernizando um clássico para fisgar as novas gerações.
Elaborada há mais de cinco séculos, a verdade é que o conteúdo desta obra é
atemporal, afinal em sua essência está a discussão do amor, até onde alguém
estaria disposto para viver uma grande paixão. Hoffman, de O Outro Lado da
Nobreza, é um devoto de Shakespeare a julgar que ele próprio interpretou
Lisandro em uma peça quando jovem, estudou teatro renascentista em Oxford e por
anos se dedicou a curadoria de um festival em homenagem ao dramaturgo. Com toda
essa intimidade com o universo shakespeariano ficou mais fácil se ater ao
linguajar rebuscado dos escritos originais, mas isso não impediu algumas
modificações em outras frentes para deixar o projeto mais comercial. Para
começar a ação foi deslocada de Atenas, na Grécia do século 16, para a Itália
do final do século 19, cenário perfeito para estimular o público com belas
tomadas oníricas. O diretor explora muito bem não apenas as paisagens naturais
e os cenários requintados, mas também enche os olhos do espectador e lhe
desperta o paladar explorando símbolos da gastronomia local, como o amassar de
tomates manual, garrafas de vinhos e a confecção de pães. Mais adiante a ópera
também entra em cena para adornar ainda mais uma produção que por si só já é um
verdadeiro deslumbre aos amantes de artes.
Hoffman não faz questão alguma de esconder que sua floresta
idealizada é bastante artificial, como se de fato fosse o cenário de uma
produção teatral, porém, bem mais rico em detalhes e propositalmente
espalhafatoso para fazer um contraponto à realidade da burguesia tingida em
tons pasteis e com cenários mais realistas. Como em um conto de fadas, o mundo
dos humanos é triste e cinzento e o das criaturas fantásticas colorido e
divertido. O elenco estrelar claramente visava chamar a atenção do público.
Nomes famosos como Pfeiffer, Kline, e Tucci atestam a qualidade da produção e
dividem os créditos com outros em ascensão na época como Everett e West. Então
em evidência em uma série de TV, Flockhart ganhou papel de destaque, mas talvez
não tenha o carisma necessário para viver a personagem mais apaixonada da
trama. Demonstrando preocupação em de fato atingir uma interpretação com tons
teatrais, com muita ênfase ao impostar a
voz e na gesticulação facial, ela é a única que não parece à vontade com
o texto versado em um grupo bastante equilibrado. Os perfis são bem
desenvolvidos dentro de uma proposta farsesca, o que nos faz perdoar algumas
situações incoerentes, e os minutos finais assumem o tom de comédia pastelão
com a encenação da tal peça de Bottom. Dentro deste universo a palavra de ordem
é sonhar, afinal quem nunca quis que como em um passe de mágica tudo que nos
aflige fosse resolvido? Sonho de Uma Noite de Verão poderia ter atingido
resultados melhores quanto a repercussão caso tivesse uma lapidação mais
apurada do texto, ter buscado uma conexão com o público mais contemporâneo.
Sejamos sinceros, são poucos que conseguem se envolver com uma trama cujos
diálogos abusam da rima e por vezes parecem querer ser cantarolados. Tal estilo
também causa um problema para os países de língua não-inglesa para tradução e
dublagem, assim vários diálogos soam estranhos ou ganham um toque cômico
involuntário. De qualquer forma, é bom ver que o trabalho de Shakespeare não se
sustentava apenas com tragédias, mas também havia espaço para diversão e
romance, afinal a vida é feita de bons e maus momentos... E sonhos também!
Comédia romântica - 116 min - 1999
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