Nota 9,0 Provocativo e emocionalmente intenso, drama desperta diversas interpretações
O cineasta dinamarquês Lars von Trier sempre que lança um filme colhe em proporções semelhantes críticas negativas e também elogios rasgados, mas uma coisa é certa: polêmicas à vista. Às vezes é difícil distinguir se realmente é seu trabalho que chama a atenção ou se as situações controversas que o diretor provoca em aparições públicas é que atraem os holofotes, como na ocasião em que foi banido do festival de Cannes acusado de fazer apologia ao nazismo. De qualquer forma, suas obras costumam levar um considerável número de espectadores às salas de exibição e permanecem no imaginário dos amantes da sétima arte. Seus trabalhos geralmente expõem uma figura feminina incompreendida em destaque em meio a um ambiente onde os aspectos negativos do ser humano são realçados como mensagens diretas ou indiretas ao próprio espectador, este que pode concordar, se ofender, assumir que não compreendeu bulhufas ou encher a boca para dizer que amou um filme quando na verdade não entendeu absolutamente nada. Foi assim com Dançando no Escuro, Dogville, Manderlay, Anticristo, Melancolia e em Ninfomaníaca. Com Ondas do Destino não seria diferente.
O singelo título vende a ideia de um belo drama com toques de romance, uma produção com todos os clichês possíveis, mas como é um longa de Trier sabemos que as inversões de expectativas são inerentes. História açucarada? Que nada! Um sabor amargo predomina do início ao fim na trama escrita pelo próprio cineasta que nos apresenta à Bess McNeill (Emily Watson), uma jovem que mora em um vilarejo na Escócia em meados da década de 1970. Ela foi criada seguindo os rígidos padrões morais da sociedade da época e do local (entenda-se como o machismo e a religiosidade ditando regras) e acabara de se casar com o dinamarquês Jan Nyman (Stellan Skarsgard). A família dela não conhece quase nada sobre esse homem, mas tem esperanças de que ele possa acalmar os constantes surtos que a moça tem. Contudo, este relacionamento avassalador logo é interrompido de certa forma. Durante algumas semanas de ausência do rapaz para trabalhar nas plataformas de petróleo ela pede a Deus que ele volte logo, o que realmente acontece, mas o retorno antecipado é devido a um acidente que o deixa tetraplégico. Sentindo-se culpada acreditando que suas preces provocaram tal tragédia, a moça se entrega às vontades do marido e faz qualquer coisa que o faça se sentir melhor, porém, estranhamente, o desejo do deficiente é de que ela tenha relações sexuais com outros homens e que lhe conte detalhes dessas relações.
Criada para obedecer às ordens do marido, o novo comportamento de Bess escandaliza a cidade e logo a jovem começa a apresentar sinais acentuados de distúrbios mentais, além de ser renegada por onde passa. Há inclusive uma cena em que Bess está sendo apedrejada por um grupo de adolescentes e o padre da região a vê ferida no chão, mas prefere dar-lhe as costas como sinal de reprovação às suas atitudes. Exposto o conteúdo da trama, não é difícil entender o porquê deste drama, que tem tudo para levar plateias às lágrimas, no fundo ser uma obra para público restrito. O diretor divide esta história sobre a lenta e sofrida degeneração de uma mulher que é obrigada a renunciar ao seu amor contra a própria vontade em episódios de crescente tensão e dramaticidade. A grande questão do roteiro é confrontar a liberdade emocional de cada um com as amarras que a religião e a sociedade impõem. Para a protagonista, realizar os desejos do homem que ama, por mais estapafúrdios que pareçam, é o correto, mas a pressão externa que recebe é muito grande e a deixa desnorteada. Todo o sofrimento de Bess acaba sendo canalizado em forma de uma doença, esta que na realidade só foi agravada, pois desde o início da projeção a câmera faz questão de focalizar expressões e trejeitos que denunciam seu estado emocional e psíquico diferentes.
Filmar um texto tão perturbador não deve ter sido fácil, mas os esforços foram recompensados. Trier colecionou vitórias como o Grande Prêmio do Júri no Festival de Cannes e levou a atriz Emily Watson a ser indicada ao Oscar, o que obviamente ampliou a visibilidade da obra. Apesar de sua personagem parecer ter atitudes amorais, ironicamente talvez ela seja uma das raras pessoas com moral em sua pequena cidade, uma das poucas que não foi completamente corrompida pelas imposições e manipulações que impregnam nos seres humanos de forma natural e invasiva. Suas cenas conversando com Deus são uma interessante mistura de dramaticidade e humor em que a intérprete alcança momentos brilhantes. Já Skarsgard também dá conta do recado e consegue conquistar o público logo no início com um tipo forte e com certas liberdades, características que depois contrastam com a imobilidade e a tristeza do mesmo em outra etapa. Vale ressaltar a naturalidade com que seu personagem manifesta seus excêntricos desejos à esposa, deixando no ar dúvidas a respeito de sadismo, depravação ou até mesmo demência, mas o espectador fica sem provas concretas para acusá-lo de qualquer coisa sendo mais fácil buscar razões positivas para justificar tais atos.
Para aumentar o clima de realismo e denúncia, os movimentos de câmera nem sempre são perfeitos e podem beirar propositalmente o amadorismo, os cortes de cenas são bruscos e a fotografia e os cenários são os mais naturais possíveis. Ou seja, o que importa não é o visual, mas sim o conteúdo. A produção talvez peque na duração, um tanto excessiva para uma narrativa que poderia ser bem mais enxuta. Porém, o final de Ondas do Destino é tão belo e simbólico que compensa todo o tempo gasto. Nos últimos minutos, o espectador tem a oportunidade de reavaliar os julgamentos que fez dos personagens até então e pode tirar suas próprias conclusões. Seriam os conceitos religiosos decadentes ou o ser humano é quem realmente está se autodestruindo? A protagonista seria uma alma pecadora ou merecia mais respeito ao abdicar de suas vontades para trazer benefícios a alguém necessitado? Do jeito peculiar próprio de Trier, essas questões e talvez tantas outras ficam no ar para que cada um pense a respeito. Confuso, agressivo, deprimente ou insano, o fato é que o cinema de Trier é único e merece ser conhecido. O cinema tornou-se tão dependente da tecnologia, visual e sons arrasadores que os próprios profissionais da indústria parecem ter esquecido que um filme precisa de uma boa história para valer a pena e se manter vivo na memória do público. E o consumidor? Será que ele realmente não gosta de um cinema para pensar ou apenas seu acesso a conteúdos do tipo é que continua restrito?
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