Nota 8 Plasticamente belo e com trama emocionante, longa exalta a cultura e tradições nipônicas
Entre produções de horror e suspense, passando pelas de ação e de humor, é inegável que o cinema asiático conquistou um grande público cativo, no entanto, romances e dramas oriundos de terras orientais continuam relegados a um público restrito. Se não fossem as várias indicações a prêmios, possivelmente Memórias de Uma Gueixa passaria em brancas nuvens, mas felizmente seguiu uma trajetória condizente à sua grandiosidade. É um filme com narrativa emotiva, visualmente deslumbrante, que ganhou a benção hollywoodiana, mas ainda assim é um filme oriental e enraizado à sua cultura, portanto, destinado a um público mais seleto e disposto a encarar as mais de duas horas de dramalhão (dos bons). Seu maior trunfo é trazer ao grande público o conhecimento de que as gueixas não são prostitutas. Tal denominação significa "pessoas da arte" e a profissional não tem que ser necessariamente um objeto sexual, pelo contrário. Quem procura seus serviços costumam ser milionários em busca de moças cultas e refinadas para lhe fazerem companhias em eventos sociais ou até mesmo na intimidade do lar, mas dividir a cama é algo discutido em um acordo prévio entre ambas as partes. A vulgarização do termo surgiu numa época que muitas ocidentais, por dificuldades financeiras, se autodenominavam gueixas pelo simples fato de serem descendentes de orientais e vendiam seus corpos a clientes instigados a descobrir o que havia por debaixo dos recatados quimonos.
O diretor Rob Marshall, do premiado musical Chicago, tratou de transformar em belíssimas imagens o conteúdo do livro homônimo do também norte-americano Arthur Golden. A trama recicla o velho clichê da moça pobre que precisa sobreviver a diversas dificuldades, mas com uma carga dramática acima do normal. A adaptação feita por Robin Swicord começa em meados de 1920 quando a pequena japonesa Chiyo (Suzuka Ohgo) é vendida pelos próprios pais que não tinham como sustentá-la e vai trabalhar como empregada em uma okya, a casa de gueixas. Tratada como escrava pelos donos do local, ela acaba sendo acolhida por Mameha (Michelle Yeoh), a maior rival de Hatsumomo (Gong Li), a principal acompanhante da casa e que imediatamente passa a demonstrar desprezo pela garota que aos poucos consegue conquistar seu espaço. Passado alguns anos, ela acaba assumindo a identidade de Sayuri (nesta fase interpretada por Ziyi Zhang) e se torna a mais disputada gueixa da região por conta de seus talentos artísticos, educação e raríssimo par de olhos azuis, embora Pumpkin (Youki Kudoh), sua amiga de infância, também brigue pela posição. Ao mesmo tempo em que vários homens a querem, como o insistente Nobu (Koji Yakusho), ela nutre uma platônica paixão por um grande executivo conhecido como Presidente (Ken Watanabe), mas a chegada da Segunda Guerra altera definitivamente não só a sua vida, mas também traz bruscas mudanças para toda a cultura japonesa.
Separada dos pais, Sayuri também perde a irmã, come o pão que o diabo amassou na casa de gueixas e ainda se vê impossibilitada de viver um grande amor, embora este seja o gancho que menos abale o emocional do espectador. Como o envolvimento amoroso é proibido na profissão da jovem, já ficamos conformados desde o início que a relação é impossível para a época rígida, mas ainda assim fica aquela pontinha de esperança, afinal boas histórias são aquelas que propõem transformações. São muitos os percalços vividos pela protagonista, mas todo seu drama torna-se suportável graças ao encanto visual oferecido da primeira à última cena. Todavia, a quem condene a excessiva preocupação com o visual afirmando ser uma estratégia para escamotear uma trama insossa e alicerçada em surrados clichês. É uma observação válida, mas também não absoluta. É certo que Marshall gasta muito tempo explorando a difícil infância da protagonista buscando claramente amolecer o coração do público que já sabe de antemão seu destino de relativo sucesso, mas por outro lado tal dedicação é justificada justamente pela ideia de traduzir claramente o que é uma gueixa. É fascinante acompanhar as cenas da garota tendo aulas com Mameha que lhe ensina detalhadamente os segredos de uma boa acompanhante que vão muito além de manter um aspecto de bibelô. Aptidões domésticas e artísticas são amplamente treinadas, assim como são dadas dicas para fugir de possíveis armadilhas caso os clientes desejem serviços sexuais.
O fato de o filme ser todo falado em inglês para agradar aos preguiçosos ianques colaborou para a escolha de um elenco já habituado com o idioma, mas é inegável que a opção enfraquece a narrativa obrigando os artistas a se preocuparem em decorar diálogos, não interpretá-los. Marshall optou por reunir um grupo de intérpretes asiáticos com nomes reconhecidos em terras ocidentais, como Watanabe que ganhou fama pela indicação ao Oscar por sua atuação em O Último Samurai. O bicho pegou mesmo quanto a escolha das atrizes. Muitos ficaram indignados pelo fato das chinesas Li e Ziyi e da malasiana Yeoh serem recrutadas para viverem japonesas, embora o fato do filme enfatizar o mizuage, o leilão de virgindade, pudesse ser um empecilho para as nipônicas que lutam há décadas para desvencilhar a ideia de prostituição do mundo das acompanhantes de fino trato. Alguns podem não ver diferença alguma, afinal todas tem olhinhos puxados, cabelos negros e pele branquinha, mas sem dúvidas atrizes íntimas da cultura retratada agregariam um valor a mais ao produto. Coincidência ou não, a China até proibiu a exibição do filme em seu território, embora suas relações já estremecidas há muitos anos com o Japão bastassem como justificativa. Contudo, é bom lembrar que a produção é made in Hollywood que em outras épocas costumava cometer erros absurdos quando precisava retratar personagens ou cenários de outros países.
Lançado em 1997, o livro rapidamente tornou-se um best-seller e empolgou Hollywood que já visava um grande épico romântico e de forte apelo popular. Steven Spielberg por anos acalentou o projeto, mas por problemas de agenda teve que abrir mão da direção, porém, fez questão de ser um dos produtores. Fazendo alusão ao conto da Cinderela, com direito a vilã, fada-madrinha, príncipe e até meias-irmãs invejosas, Memórias de Uma Gueixa realmente tem uma narrativa clichê e folhetinesca que não agrada a todos, porém, sua longa duração também acaba se tornando um empecilho. Podem reclamar do maniqueísmo da narrativa, interpretações engessadas, trilha sonora estridente e emotiva em pontos estratégicos (embora belíssima), mas é impossível apontar falhas quanto ao visual arrebatador. Seja em cenários decadentes e obscuros ou fotografando belas paisagens adornadas por flores e elementos típicos, não se pode negar que Marshall cumpriu um de seus propósitos: fazer o espectador viajar no tempo e espaço. Contudo, mesmo atraído pelas qualidades técnicas, sem o mínimo de conhecimento sobre a cultura oriental ou mente aberta para conhecê-la não tem jeito de se estabelecer conexão entre o produto e plateia, o que pode explicar as várias críticas negativas. Vale a pena uma revisão por parte dos detratores.
Vencedor do Oscar de figurinos, direção de arte e fotografia
Drama - 145 min - 2005
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