Nota 8 Comédia inteligente aborda o direito de cada um escrever sua própria história de vida
Pense nesta simples e ao mesmo tempo enigmática frase: "esta é a história de um homem chamado Harold Crick e seu relógio de pulso". É com ela que se inicia a comédia Mais Estranho que a Ficção que rapidamente caiu no gosto da crítica especializada, mas amargou o desprezo do público mesmo contando com o ator Will Ferrell como protagonista. O astro tentava fazer o mesmo que Jim Carrey fez há alguns anos: trocar sua alcunha de comediante pela de ator sério. Ele dá vida ao tal Crick, um pacato auditor da Receita Federal que vive uma rotina metódica e baseada em conceitos matemáticos. Sem laços afetivos com quem quer que seja, ele próprio julga sua existência insignificante e se distrai cronometrando as horas, os passos que dá até o ponto de ônibus ou as dezenas de movimentos que faz com a escova de dentes. Os primeiros minutos do filme são dedicados a mostrar esses bizarros hábitos, mas paralelo a essa trama o enredo nos apresenta à Kay Eifell (Emma Thompson), uma escritora talentosa, bem-sucedida e que é famosa pela ousadia de em todos os seus romances optar por matar seus heróis, mas no momento está com dificuldades para se livrar do protagonista de sua última obra. A demora acaba fazendo com que a editora a pressione para entregar o livro o mais rápido possível e a obriga a aceitar a ajuda da consultora Penny Escher (Queen Latifah), cuja função seria apontar possíveis caminhos para a história.
O problema é que a própria Kay não sabe justificar o porquê de não conseguir matar seu personagem, no entanto, nem desconfia que ele realmente existe e está sofrendo com a manipulação de suas palavras que inexplicavelmente consegue ouvir. Crick escuta nitidamente uma voz feminina narrando cada uma de suas ações, mas o que mais lhe intriga é uma profética frase que escuta entre essas estranhas citações: "mal sabia ele que esta ação tão corriqueira daria início a eventos que levariam a sua morte". Não demora muito para o auditor descobrir que é personagem de um livro e então precisa correr contra o tempo para encontrar a autora e implorar sua piedade. Sua sorte é que ela está sofrendo um bloqueio criativo e assim oferece uma espécie de segunda chance ao personagem que então aproveita para literalmente sair da insossa rotina. Aconselhado a buscar auxílio com Jules Hilbert (Dustin Hoffman), um professor de literatura que só aceita colaborar depois que escuta três palavrinhas mágicas de uso comum em livros, "mal sabe ele...", expressão que ele é um profundo estudioso, Crick finalmente vivencia o sentimento do amor quando conhece Ana Pascal (Maggie Gyllenhaal), uma jovem cheia de personalidade e ideais de justiça, mas as coisas começam mal porque ele a procura por conta de uma dívida com o governo. A moça se sente no direito de pagar o quanto e quando acha que deve seus impostos, pois sabe que sua contribuição não será usada para benfeitorias sociais, mas sim particulares e de gente sem necessidade alguma.
Partindo de uma premissa originalíssima e que aponta diversas possibilidades de desenvolvimento, o roteiro de estreia de Zach Helm figura entre os mais inteligentes dos anos 2000 simplesmente reciclando a velha mensagem edificante sobre a importância de saber viver e tirar o máximo de proveito de cada momento. O discurso batido ganha uma roupagem nova e moderna que agrada a plateias mais cultas ou elitizadas, mas busca também dialogar com populares fisgando-os através de um elenco de rostos conhecidos e simpáticos. Ferrell deixa de lado os exageros e histrionismos que fizeram sua fama para se entregar a um personagem mais introspectivo e crível que conquista o espectador em poucos minutos. O melhor é que quando o vemos em cena ainda enxergamos o perfil do ator tal qual o conhecemos, totalmente a vontade e sem forçar a barra para tentar convencer em um papel levemente mais sério. Constatamos que a sutileza e a sensibilidade fazem parte de seu repertório, só não lhe dão boas oportunidades para mostrar tais particularidades. Thompson também surpreende ao surgir sem ares de glamour. A atriz que comumente tem sua imagem ligada a personagens de época, milionários ou intelectuais tem bons momentos vivendo uma pessoa de certa forma depressiva, mas livre dos clichês do perfil. Ela não é dependente de remédios e nem fica choramingando pelos cantos. Seu maior problema é o apreço pelo mórbido e fantasias suicidas, o que ela extravasa em seus livros.
Para dar vazão aos pensamentos da escritora e não confundi-los com a narração que desencadeia os conflitos do protagonista, entra em cena a tal Penny para dialogar com ela e ouvir suas lamentações e dúvidas, mas a personagem não acontece, não agrega nada a trama. Conhecida por chamar a atenção mesmo em papéis dramáticos, Latifah está apagadinha, porém, seu deslocamento no conjunto tem justificativa visto que é a mais distante do pacato auditor. Já Hoffman e Gyllenhaal têm participações mais efetivas na transformação deste homem, cada um atuando de uma maneira específica. Ele seria a voz da razão, aquela pessoa que pode não ser a solução para seus problemas, mas tem sempre aquela palavra de conforto, ainda que acrescida de certo sarcasmo. Já o interesse romântico de Crick repete a fórmula dos opostos que se atraem. Tudo que ele tem de calmo ela tem de explosivo, como fica claro logo quando se conhecem. Espontânea e cativante, ela consegue transformar uma simples cena em algo tocante. A sequência em que serve cookies e o protagonista revela que não tem memórias de infância com a mãe preparando bolachas é singela e emocionante, dando a entender que as dificuldades em estabelecer relacionamentos no presente tem raízes em seu passado em família. E é justamente este o intuito de Mais Estranho que a Ficção, lembrar que são pequenas coisas do dia-a-dia que ajudam a formar nossa personalidade, mas tal perfil não é imutável.
Embora sempre soubesse que era um fracassado, Crick precisou de uma voz martelando em sua cabeça para perceber que estava deixando os outros escreverem sua trajetória e mesmo sendo protagonista participava desta história como um mero coadjuvante. A iminência da morte o faz acordar a tempo de dar a volta por cima e o diretor Marc Foster também parece ter tido um choque de realidade. Após alcançar sucesso com o pesado A Última Ceia e o singelo Em Busca da Terra do Nunca, amargou o desprezo em sua incursão pelo universo do suspense no intrincado A Passagem, mas não se deu por vencido. Provando que pode transitar pelos mais variados gêneros com desenvoltura, a leveza desta tragicomédia revela o quão a vontade ele estava ao assumir uma produção que diverte e ainda oferece conteúdo, a união do útil ao agradável. Lembrando um pouco o estilo original e metalinguístico de Charlie Kauffman, responsável pelos elogiados Adaptação e Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças, é uma pena que esse verniz de obra para intelectuais ajude a afugentar o público.
Comédia - 105 min - 2006
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