Nota 7 Preservando características, diretor chinês não trai seu estilo ao ingressar em Hollywood
Ator é ator e cantor é cantor. Embora seja muito comuns artistas estrangeiros acumularem as duas funções, ainda para nós brasileiros isso soa como algo estranho. A música pode ter vindo antes ou depois da interpretação, mas é difícil disfarçar a sensação de que o profissional que atua nas duas áreas só está querendo se promover. Ainda bem que há exceções que nos fazem repensar este pensamento tacanho. Certamente muita gente deve ter torcido o nariz quando ouviu falar que a cantora Norah Jones ia estrelar um filme, mas quem a apedrejou provavelmente se arrependeu ao ver sua atuação no drama romântico Um Beijo Roubado. Ela dá vida à Elizabeth, ou simplesmente Lizzie, uma jovem que está transtornada quando entra no restaurante-cafeteria de Jeremy (Jude Law), um homem pacato que se lembra dos clientes pelos pratos que consomem e que tem como hobby colecionar chaves esquecidas por eles. Para cada uma delas ele tem uma história para contar e se recusa a jogá-las fora alegando que ao fazer isso algumas portas nunca mais poderiam ser abertas. São mensagens do tipo justamente o que Lizzie precisa neste momento em que descobre através do menu que o ex-namorado pediu que ele não só terminou o relacionamento de uma hora para a outra como também já estava circulando com uma nova companhia. Como o rapaz costumava frequentar o local, a garota acaba desabafando com o atendente que presta total atenção em suas lamentações e procura aconselhá-la, afinal ele a compreende totalmente.
Para se manter ocupado e esquecer uma desilusão amorosa, Jeremy buscou refúgio confinado atrás de um balcão, mas cada um enfrenta a tristeza de uma maneira diferente. Sua relação de amor, amizade e cumplicidade com Lizzie nasce a partir de encontros casuais que se estendem por várias noites de sedução velada. Ao invés de amargar uma ressaca a base de destilados, a jovem simplesmente afoga suas mágoas em um bom pedaço de torta de blueberry que, diga-se de passagem, sempre sobrava no fim do dia. Fazendo uma metáfora, o atendente diz que não há nada de errado com o doce, apenas costumava ser preterido por outros sabores, mas há sempre alguém disposto a experimentá-lo e dessa forma a jovem também deveria encarar o momento difícil. Se o namorado a trocou por outra o jeito é dar a volta por cima e é exatamente isso que ela faz. Tendo abandonado no café as chaves de sua casa para serem entregues ao ex, Lizzie por várias vezes volta ao local para receber sempre a mesma resposta negativa até o momento em que decide sair de Nova York e colocar o pé na estrada sem destino. Fazendo bicos como garçonete dia e noite, ela cruza os EUA relatando suas experiências em longas cartas destinadas a Jeremy com quem tantas confidências trocou, mas ele sentindo a ausência física da moça descobre estar apaixonado. Todavia, apesar de todo o carisma do personagem, por um bom tempo o esquecemos e as atenções se voltam para a andarilha.
Durante a viagem repleta de autodescobertas e amadurecimento, Lizzie entra em contato com diversos tipos de pessoas, todos também com algum tipo de perda a ser superada. Numa cidade do Texas, por exemplo, testemunha o relacionamento doentio do policial Arnie (David Strathairn) com a ex-mulher Sue Lynne (Rachel Weisz), o que o obriga a se entregar a bebida e pensar em fazer uma loucura. Já próximo de Las Vegas, a garçonete faz amizade com Leslie (Natalie Portman), uma apostadora compulsiva com problemas de relacionamento com o pai. Juntas elas compram um carro e percorrem um longo trecho até chegarem a inevitável separação quando é hora de Jeremy voltar à cena. O longo período de separação era necessário para que essas duas pessoas que trocaram apenas um beijo pudessem maturar a ideia de que o amor mais uma vez os procurava, bastava estar pronto para abraçá-lo. Seguindo levemente os passos de um road movie, o longa marca a estreia no cinema americano do diretor chinês Wong Kar-Wai, mais conhecido por cinéfilos de carteirinha que idolatram obras como 2046 e Amor à Flor da Pele. O cineasta volta a abordar sua temática predileta, os amores impossíveis, trazendo a delicadeza e o colorido característicos de seus trabalhos para o universo da nação ianque consumista, não por acaso a trama tem como ponto inicial e crucial um lugar onde se serve praticamente de tudo para saciar a todos os mais diversos paladares. É uma pena que o filme em si tenha um sabor que agrade a poucos. Sua lentidão e busca incessante para que cada cena tenha algum detalhe artístico podem ser alguns dos empecilhos para envolver espectadores desavisados, mas o diretor não estava a fim de angariar novos fãs traindo seu estilo.
Se não pôde recorrer aos mobiliários e decorações orientais que indiscutivelmente trazem uma beleza estética sedutora, Kar-Wai encontra nas luzes de neon e nos reflexos dos vidros os recuros necessários para exercitar seu apuro técnico e visual. Praticamente todo o longa é desenvolvido dentro de bares, o ponto de encontro mais comum na cultura americana, ambientes perfeitos para abrigar a narrativa escrita pelo próprio cineasta em parceria com Lawrence Block. A boêmia contrasta com a melancolia nestes cenários multicoloridos, mas ainda mantendo o aspecto noturno das ações, assim a preocupação com o visual da fita não é um mero capricho de seu realizador e sim um item essencial para ajudar quem assiste a se sentir imerso na história. É interessante observar que inicialmente até mesmo Lizzie parece alheia a tudo, colocando-se na posição de mera espectadora da vida dos outros. Quando começa a desabrochar internamente, aí sim ela assume o papel de protagonista, algo assinalado pelas próprias imagens que então surgem livres de qualquer tipo de interferência. Antes disso, o diretor buscava incessantemente angulações de câmera, iluminações e efeitos que intensificassem a sensação de voyeurismo, como se alguém observasse as ações através de barreiras de vidros, trucagens que reforçam as belezas das cenas quase em tom onírico. Tecnicamente e visualmente não há o que se discutir. Um Beijo Roubado é uma perfeição, mas de nada adianta uma bela embalagem se o conteúdo não faz jus. É totalmente compreensível a trama, mas as escolhas do cineasta para desenvolvê-la prejudicam o resultado final.
O peso do nome de Kar-Wai, a menção a participação no Festival de Cannes e o elenco de rostos conhecidos chamam a atenção, mas não podem ser encarados como garantia de um filme excepcional. A opção de expandir a trama separando o casal principal é justificável, mas abre caminho, por exemplo, para a subtrama do policial abalado emocionalmente parecer mais atraente. A sensação ao final é que separadamente teríamos três histórias que renderiam muito mais. Pelo menos a produção não pode ser rotulada como talhada para lançar Jones em Hollywood. Não se sabe ao certo o porquê de sua escolha, mas não se pode negar que a inexperiência da moça colabora para a naturalidade da personagem. Do início ao fim, ambas traçam uma trajetória de autoconhecimento, uma em busca de sua essência e do amor enquanto a outra tenta despertar seu potencial como atriz. Todavia, embora não tenha recebido críticas negativas, tampouco elogios rasgados, a cantora ao que tudo indica não foi seduzida pela carreira no cinema.
Drama - 94 min - 2007
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