NOTA 8,5 Tendo a vitória da Alemanha na Copa de 1954 como pano de fundo e através da ótica de uma família, drama busca a renovação da esperança em dose dupla |
Desde que a televisão surgiu, o
evento da Copa do Mundo tornou-se popular em todos os países, obviamente
galgando cada passo de acordo com a modernização de cada pátria. Na Alemanha de
1954, alguns poucos lares ou espaços públicos já podiam se dar ao luxo de ter
um aparelho de TV instalado, embora a maioria escutasse a narração dos jogos
pelo rádio. Ainda bem que já existiam estas invenções, caso contrário os
torcedores locais iam perder a chance de acompanhar a primeira vitória do país
na competição, um título que devolveria a autoestima e apontaria o início de
uma nova Era à está pátria. Unindo com perfeição uma trama fictícia a fatos
reais, O Milagre de Berna é um drama que recria a euforia pela qual
uma minoria do povo alemão passava torcendo por sua seleção ao mesmo tempo em
que o país ainda sofria com os fantasmas do nazismo. Com direção de Sönke
Wortmann, a primeira participação da Alemanha no evento esportivo após a
Segunda Guerra Mundial e depois de ter sido dividida em ocidental e oriental é
recontada através da ótica da baqueada família Lubanski. Enquanto muitos
patrícios repudiavam a presença da Alemanha Ocidental nos jogos por conta da
péssima imagem acumulada pelas atrocidades da guerra, o pequeno Matthias (Louis
Klamroth) parecia bastante entusiasmado e torcia pela convocação de seu ídolo,
o jogador Helmut Rahn (Sascha Göpel), que apesar de ainda muito jovem o garoto
o elegeu como uma espécie de figura paterna. Ele costumava carregar a bolsa de
roupas do esportista até os treinos e em troca ganhava o direito de assistir
aos jogos de graça já que era considerado um mascote da sorte pelo rapaz. A
vida do pequeno torcedor muda radicalmente quando Richard (Peter Lohmeyer), seu
pai, retorna para a casa após onze anos como prisioneiro de guerra na Rússia.
Até poucos dias antes de sua volta a família acreditava que ele poderia estar
morto e sua esposa Christa (Johanna Gastdorf) tentava segurar as pontas com os
lucros que tirava de um bar onde também trabalhavam seus outros filhos, os
adolescentes Ingrid (Birthe Wolter), aparentemente conformada com a situação, e
Bruno (Mirko Lang), que desejava ganhar a vida como músico e assumiu
voluntariamente as funções patriarcais do clã. Richard, querendo impor sua
rígida disciplina, demonstra dificuldades para se adaptar a rotina em família e
constantemente tem atritos com o filho mais velho simpatizante do comunismo e
com a filha que flerta com soldados. Já o caçula parece aceitar melhor o
retorno do pai, mas Richard também impõem barreiras nesta relação já que não
sabia da existência de um terceiro filho que nascera exatamente nove meses após
sua partida, pois jamais recebeu as cartas enviadas pelos parentes.
Paralelo ao drama dos Lubanski, a
seleção alemã da parte ocidental está na Suíça participando da Copa do Mundo,
mas sua atuação é muito criticada pelos jornalistas, principalmente após a
vexatória e histórica goleada que levaram da equipe da Hungria na primeira fase
(8 a 3). Pelos primeiros resultados, os húngaros eram os favoritos ao título
enquanto os alemães tinham uma torcida desacreditada, ainda mais pelas escolhas
do técnico Sepp Herberger (Péter Franke) que preferiu colocar os reservas em
campo nos dois primeiros jogos para poupar os titulares para a terceira e
decisiva partida contra a Turquia. Visionário, ele estudou estratégias que em
um primeiro momento assustaram, mas os resultados impediram que a equipe
enfrentasse o Brasil e o Uruguai nas fases seguintes, respectivamente os
vice-campeões e os campeões da Copa anterior. Na segunda etapa do campeonato, o
time enfrentou a Iugoslávia em um jogo que marcou a estreia de Rahn no mundial
que fez um dos dois gols da seleção contra nenhum acerto dos rivais (pelo contrário,
marcaram um gol contra), mas ainda assim a própria imprensa alemã parecia
insistir em uma campanha desfavorável a participação da Alemanha ocidental nos
jogos. As entrevistas coletivas de Herberger podem parecer maçantes, mas
guardam pequenos detalhes interessantes, como a compreensão do termo “tempo
Fritz Walter”, utilizada até hoje por jogadores germânicos como incentivo.
Walter (Knut Hartwig) era o capitão do time e teve a difícil tarefa de manter a
empolgação dos jogadores diante das inúmeras críticas até levá-los a conquista
do título, mas até esse final feliz chegar muitas coisas aconteceram tanto para
a seleção quanto para os Lubanski. Richard deseja recuperar sua posição de
chefe de família e queria até se desfazer do bar da esposa prometendo voltar a
sustentar a todos com seu próprio esforço, mas não conseguia mais se concentrar
no trabalho nas minas de carvão como antes, mais uma frustração a se somar a
tantas outras que tentava digerir há mais de uma década. O resultado é que ele
vivia brigando a ponto de Christa quase desejar a separação, ainda mais depois
que Bruno fugiu para a parte oriental do país onde julgava existir um estilo de
vida ideal. No entanto, há males que vem para o bem. Após esta afronta, o
patriarca começa a regenerar-se focando na educação do caçula. Antes amante do
futebol, Richard recupera a fé no esporte e passa a incentivar Matthias nas
partidas com os amigos. Enquanto isso, a seleção fazia bonito na Copa e chegava
a grande final, mas quis o destino que mais uma vez seu adversário fosse a
temida Hungria. Para adicionar um pouco de humor à trama, temos a presença do
repórter Paul Ackermann (Lukas Gregorowicz) que de supetão recebeu a notícia de
que deveria fazer a cobertura da Copa, mas para tanto ele teria que levar na viagem
a esposa Annette (Katharina Wackernagel), uma mulher bem mais segura e
impetuosa que o próprio marido.
Apesar da boa campanha da
seleção, Rahn estava apreensivo para o último jogo sem a presença de seu
mascote, mas para a surpresa de Matthias seu próprio pai se oferece para
acompanhá-lo até Berna para assistir a última partida da Copa e assim se dá o
tal milagre do título: uma cidade que serviu como palco da vitória de um time
que começou o campeonato totalmente desacreditado e que também inspirou a definitiva
reconciliação de um pai com seu filho e porque não a reunião de uma família.
Escrito por Wortmann em parceria com Rochus Hahn, O Milagre de Berna foge
um pouco do esquemático enredo da superação através do esporte. Tal gancho se
faz presente em dose dupla neste caso, mas o roteiro agrega alguns ingredientes
que o tornam um produto diferenciado, assim não importa que já seja de nosso
conhecimento de antemão o final feliz da trama, pois vibramos com a seleção
alemã e torcemos por Matthias de qualquer maneira. Graças aos aspectos
técnicos, desde os primeiros minutos somos transportados para a década de 1950
e podemos comparar o cinzento cotidiano alemão que se contrapõe ao ensolarado
solo suíço, uma metáfora a ideia de que dias melhores viriam para a Alemanha a
partir do episódio da Copa. É preciso destacar também o capricho para recriar
detalhes do mundo do futebol, como os uniformes dos jogadores e a recriação da
bola oficial da época. Até o criador da marca Adidas é lembrado pelas chuteiras
com travas que foram especialmente desenvolvidas para a participação dos
alemães no evento. Para dar mais veracidade a reconstituição da partida
decisiva do mundial, ocorrida no dia 04 de julho e a única encenada no longa, o
diretor, que também já se dedicou ao futebol, convocou diversos jogadores
profissionais e técnicos para figuração e consultoria, mas preferiu não
trabalhar com planos abertos a fim de não quebrar a “magia”. O estádio original
foi demolido há muitos anos e com o orçamento modesto obviamente não foi
possível recriá-lo com suas reais dimensões. A opção foi reproduzi-lo
digitalmente, alcançando um resultado razoável. O que falta de grandiosidade
nas arquibancadas e no próprio tamanho do gramado sobra em riqueza de detalhes
para criar a atmosfera de euforia e tensão em uma partida decisiva, ainda mais
esta em questão que ocorreu sob clima chuvoso e rivalidade entre os times
escancarada. Lançado dois meses após o falecimento do verdadeiro Rahn e
vencedor de alguns prêmios em festivais europeus, o longa levou mais de seis
milhões de alemães aos cinemas, mas estranhamente passou em brancas nuvens pelo
Brasil que pretensiosamente se assume como o país do futebol. Pura rivalidade?
Se for isso, santa ignorância! O episódio de Berna deve ser lembrado por todas
as pátrias como um exemplo de que até o último minuto devemos ter esperanças de
que é possível virar o jogo, basta ter confiança. O filme pode começar com seu
placar definido, mas as emoções que ele proporciona podem ser tão imprevisíveis
quanto uma boa partida de futebol.
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