Nota 9 Longa critica a valorização da beleza de forma sarcástica e reciclando argumento batido
Muitas comédias hollywoodianas, principalmente adolescentes, investem na crítica à vaidade e ao culto à imagem. Quantos filmes você já não viu sobre a garota menos popular do colégio triunfando no final com direito a conquistar o gatinho do pedaço? O próprio conto clássico "O Patinho Feio" já trata de levar para o universo infantil conceitos a respeito da importância da beleza interior em contraponto a exterior. Na teoria tudo é muito lindo e civilizado, mas na prática sabemos que as coisas não são tão fáceis para quem não nasceu com a dádiva da beleza extrema. O diretor Álex de La Iglesia traz tal temática para o universo adulto e corporativo na comédia de humor negro espanhola Crime Ferpeito. Não é erro de digitação. A palavra perfeito é grafada errada propositalmente no título, uma homenagem do cineasta ao longa Disque M Para Matar que na Espanha foi traduzido como "Crimem Perfecto". A brincadeira está na coincidência de ambos os filmes girarem em torno do plano de um assassinato, mas no caso da comédia as coisas não saem da forma perfeita que o protagonista desejava. Iglesia, autor do roteiro em parceria com Jorge Guerricaechevarría, oferece ao público uma imagem diferente do cinema espanhol. A crítica social já começa pelo fato de quase toda a trama ser desenvolvida dentro de um shopping, mostrando o quão consumista está a população espanhola, substituindo as tradições que encantam os turistas para cada vez mais se aproximar ao estilo frenético e vazio da vida dos ianques.
Rafael González (Guillermo Toledo) tem seu cotidiano restrito às atividades e contatos que faz dentro de uma loja de departamentos onde é supervisor do setor de roupas femininas. Como um legítimo conquistador latino, ele não se sente nem um pouco constrangido em transitar entre calcinhas e camisolas, pelo contrário, seu trabalho facilita seu envolvimento com as funcionárias e clientes que caem na sua lábia. O rapaz então tira proveito do aconchego dos provadores e do setor de camas, além do poder que sua posição lhe confere sobre os seguranças que se fazem de cegos diante da libertinagem. Não é a toa que seus colegas de trabalho o repudiam. Mesmo tendo um emprego recompensador, financeira e sexualmente, González queria mais, desejava se tornar o gerente de todo o andar destinado às vestimentas, mas para tanto deveria vender mais que o sisudo Don Antonio (Luis Varela), o encarregado da parte masculina e seu concorrente direto ao posto. No entanto, ele fica desorientado ao perder a chance da promoção por causa de um cheque sem fundos e agora, além da frustração, terá que também aprender a lidar com as humilhações propostas por seu mais novo chefe que até o rebaixa a cuidar do setor dos tamanhos grandes. No ápice da revolta, González acaba brigando com Antonio e acidentalmente o mata, mas para sua infelicidade o ato é flagrado por Lourdes (Monica Cervera), uma das vendedoras da loja aparentemente tímida e desprovida de beleza, alguém que o garanhão jamais deu atenção. Preocupado em esconder o corpo e evitar que a polícia desconfie de algum envolvimento seu, o vendedor acaba ficando nas mãos da colega que o ajuda a alterar a cena do crime.
Assim que González assume o posto do falecido, a testemunha exige que as vendedoras bonitonas sejam substituídas por mulheres comumente preteridas nos empregos, como gordinhas e baixinhas. Contrariando expectativas, as vendas aumentam consideravelmente com as clientes sendo atendidas por mulheres com quem se identificam, mas para González a justificativa é que qualquer freguesa se sentiria linda diante de tantas barangas. Nesse ponto, o enredo atinge seu grande objetivo de criticar a sociedade moderna que preza por pessoas com um padrão mínimo de beleza. Contudo, Lourdes não se contenta apenas em ser valorizada no trabalho. Ela vê na chantagem a maneira mais fácil de conseguir um marido. O filme então se concentra nas várias tentativas do protagonista em se livrar de um casamento forçado que também em curto prazo poderia colocar sua vida profissional em risco. A imagem confiante que ostentava, sempre perfumado e bem vestido, pouco a pouco se esvai até restar o semblante de um homem tristonho e comum, tudo que ele renegava. Apesar de demonstrar sofisticação e elevada autoestima, González nunca se encaixou muito bem aos famosos padrões de beleza e sedução. Barbudo, com sobrancelhas quase sempre arqueadas e cabelos forçosamente penteados com gel, o perfil logo ganha empatia, afinal qual homem nunca se sentiu o máximo quando bem trajado? O problema é que sem o nó na gravata e os cabelos desgrenhados lembramos que somos todos comuns.
Os primeiros minutos são dedicados a desenhar o universo do protagonista detalhadamente, com direito a opiniões de seus colegas de trabalho. Olhando para a câmera e conversando com o espectador, González poderia perfeitamente ser um daqueles repugnantes riquinhos americanos tão comuns em comédias românticas, mas graças ao talento de seu intérprete não conseguimos ver o personagem com maus olhos e a certa altura é até possível sentir um pouquinho de pena de sua situação. Se já é frustrante sonhar com um upgrade sem data para acontecer, imagine sentir o gostinho do sucesso e de repente se ver no fundo do poço. Para desabafar, ironicamente, González tem apenas a assombração de Antonio que vez ou outra surge para aconselhá-lo a se livrar da chantagista que acabou fisgando o homem por quem nutria uma paixão platônica e que certamente jamais seria correspondida, nem mesmo para um rápido flerte. A química (ou seria a ausência dela?) do improvável casal é um achado e eles dividem cenas divertidíssimas, como o primeiro jantar com a disfuncional família da noiva. Como um peixe fora d’água, González mete os pés pelas mãos ao tentar ser gentil com a sogra, se surpreende com a cunhada de apenas oito anos, que afirma estar grávida de seu professor de ginástica, e parece só se simpatizar com o sogro que fica alheio a tudo devido a fortes medicamentos que o dopam. Para completar, ele ainda é obrigado a assistir um programa de TV onde noivas pressionam seus namorados a aceitarem se casar de surpresa e em rede nacional, o que poderia ser seu cruel destino.
O cinema de Iglesia é legitimamente independente. Seus filmes inserem naturalmente nudismo, situações sexuais, palavrões e críticas ácidas, mas ao mesmo tempo é divertido, inteligente e com temáticas universais. Apadrinhado por Pedro Almodóvar, que produziu seu longa de estreia, a ficção científica e trash Ação Mutante, o cineasta jamais alcançou o mesmo reconhecimento de seu compatriota, mesmo seguindo um estilo próprio de trabalho que busca subverter gêneros clássicos. Brincou com o horror em O Dia da Besta e o faroeste em 800 Balas, por exemplo. Nunca ouviu falar destas produções? Pois é, realmente parece existir uma má vontade quanto a distribuição dos trabalhos de Iglesia, mas sem dúvida Crime Ferpeito poderia ter mudado essa situação. Adaptando o suspense clássico ao campo do humor, o cineasta apresenta uma obra ágil, ousada e até mesmo claustrofóbica, tanto pelo espaço físico quanto ao sufoco vivido pelo protagonista que chega ao limite da loucura. A queda de Rafael se opõe a ascensão de Lourdes, literalmente uma vingança das feias.
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