NOTA 8,5 Suspense propõe uma angustiante narrativa em que um família pode se dissolver por conta de consequências de mazelas históricas e segredos |
Chato, estranho, perturbador, melancólico, ousado, estilístico,
autoral, alternativo ou excepcional. São várias as palavras que podem ser
empregadas para definir o suspense francês Caché, tanto negativas quanto
positivas, mas o fato é que não dá para ficar inerte quanto à obra. Os cinco
primeiros minutos já demonstram que o filme foge do convencionalismo. Um longo
plano estático de uma residência de classe média alta é mostrado à distância,
mas aparentemente nada de anormal acontece. A certa altura a imagem é
congelada, rebobinada e depois avançada enquanto ouvimos uma discussão a
respeito do conteúdo desta fita VHS, um presentinho misterioso que o casal Anne
(Juliette Binoche) e Georges Laurent (Daniel Auteil) recebeu embrulhado em um
papel contendo um sinistro desenho feito com traços aparentemente infantis, mas
chama a atenção que em meio aos rabiscos negros existe um detalhe em vermelho
simbolizando sangue. A família aparentemente não tem problemas emocionais,
financeiros ou inimigos, pelo contrário, pais de um único filho, o adolescente
Pierrot (Lester Makedonsky), o casal vive imerso em um universo burguês e
cultural. Georges apresenta um programa de crítica literária na televisão
enquanto a esposa trabalha em uma editora de livros. A gravação da fachada da
casa dura cerca de duas horas, incluindo também cenas noturnas, e os Laurent
acreditam que pode ser alguma brincadeira de mau gosto de algum colega do
filho, mas mesmo assim eles ficam com a pulga atrás da orelha afinal não é nada
confortável ter a sensação de alguém estar vigiando seu cotidiano. A
preocupação aumenta com telefonemas cuja voz do outro lado se cala, cartões com
imagem macabras enviados até mesmo para Pierrot e uma segunda fita contendo
imagens da fachada da casa de mãe de Georges. Não há dúvidas, alguém que
conhecesse esta família muito bem está tentando apavorá-la, aliás, tem
conhecimento de detalhes da infância do patriarca, mas sem danos materiais ou
físicos a polícia diz que nada pode fazer. O monótono cotidiano do clã então
sofre uma sacolejada forçada e até mesmo desequilibra o relacionamento modelo
de Georges e Anne. Ela acredita que o marido está escondendo algo e o crítico,
por sua vez, liga alguns pontos coincidentes e suspeita que um ex-amigo de
infância que não via a muito tempo está por trás de todas essas ameaças, mas
explica esse passado com meias palavras à esposa.
Majid (Maurice Bénichou) era filho de um casal de argelianos empregados
dos pais de George e quando ainda usavam calças curtas o futuro jornalista
teria armado uma arapuca para desacreditar o amigo e assim conseguir sua transferência
para um orfanato. Nos anos 60, as relações da França com a Argélia, então uma
de suas colônias, estavam estremecidas e muitos argelianos teriam morrido em
Paris durante um protesto contra a política colonialista do governo francês. Os
pais de Majid teriam falecido afogados em um massacre policial e a família de
Georges pensava em adotar o garoto, mas o filho legítimo se irritou por ter que
dividir as atenções e até mesmo seu quarto e teria contado uma mentira cabeluda
para afastá-lo para sempre. Enquanto Majid amarga uma vida de frustrações por
não ter tido uma boa educação e estrutura familiar, seu algoz goza de uma vida
de privilégios, assim o crítico está certo que a tortura psicológica que está
sofrendo é um plano de vingança. Dessa forma, o filme pode ser comparado a uma
alegoria feita à política das relações inter-raciais. A França desenvolvida e
que repudia seu passado obscuro é representada por Georges enquanto a combalida
Argélia, mesmo hoje emancipada, tem em Majid a sua imagem. Quem tem mais poder
só pensa em mantê-lo ou ampliá-lo, os outros que se danem. Austríaco radicado
na França, o diretor e roteirista Michael Haneke é um grande observador do
comportamento humano em situações complexas ou limites e suas obras costumam
ter como foco personagens da classe média atingida por algum tipo de choque,
como no caso de Violência Gratuita,
obra que ele filmou em 1997 e fez questão de assinar uma refilmagem em 2009.
Antes mesmo da superexposição de seu melancólico e sofrido Amor, vencedor do Oscar de filme estrangeiro em 2013, o cineasta
vinha traçando uma interessante trajetória colhendo elogios da crítica e
prêmios nos mais diversos festivais, mas seus trabalhos sempre foram restritos
a plateias seletas que buscam um cinema longe dos clichês hollywoodianos. No
caso deste suspense, não há espaço para adrenalina, edição frenética, barulho,
diálogos super inflamados e até mesmo a trilha sonora é desprezada, assim o
espectador nunca é avisado da emoção que sentirá a seguir. Cada mudança de cena
é uma surpresa. Fugindo das estruturas do tipo quebra-cabeças, que quase sempre
apelam para a câmera tremida ou mudanças na fotografia, Haneke consegue
envolver e angustiar com sua câmera lenta que parece buscar pistas em qualquer
detalhe visual. O filme já começa de forma inovadora. Os créditos iniciais são
apresentados continuamente como se alguém digitasse um texto diretamente na
tela. O amontoado de letras lembra a uma espécie de código.
Os vídeos perturbadores que os protagonistas assistem ao longo da
narrativa propositalmente possuem uma imagem perfeita, um recurso para
confundir ou testar a atenção do espectador. Qualquer desvio e fica difícil
distinguir se a cena da frente da casa faz parte do roteiro ou se pertence ao
vídeo amador, dessa forma tais imagens assumem praticamente a função de um
personagem onipresente, aquele que vigia o cotidiano dos Laurent. A sensação de
desorientação é a principal responsável pelo clima tenso que acompanha o longa
do início ao fim, um luxo que pode se dar uma produção independente. Certamente
se fosse feito nos EUA produtores insistiriam para que fosse feita uma
diferenciação da imagem do filme dentro do filme, o que tiraria boa parte do
valor da proposta. Mesmo com seus
trabalhos em sua maioria tendo distribuição restrita, o nome Haneke há anos
está em evidência, mas como um cineasta autoral ele não se deixou comprar pelo
cinema industrial, assim suas obras preservam elementos característicos de sua
filmografia. Os efeitos do passado no presente, a paranoia do ser humano diante
de um problema pessoal ou coletivo e a dificuldade que os indivíduos têm de
aceitar as responsabilidades sobre seus atos são algumas das coincidências
entre suas produções. Caché, um verbo francês que
significa esconder ou ocultar e que cai como uma luva ao filme, amplia o
universo do cineasta ao resgatar mazelas históricas da França. A ideia de
fundamentar sua trama em um episódio de intolerância étnica e cultural surgiu
depois que ele assistiu a um documentário sobre o massacre de cerca de duzentos
argelinos que foram atirados no rio Sena em Paris em 1961. Nem sempre a mídia
destaca, mas mesmo após muitas colônias terem se emancipado, alguns países da
Europa ainda mantém relações conflituosas entre os grupos raciais dominantes e
as minorias étnicas provenientes de países antes colonizados (geralmente
africanos). A situação é mais ou menos como a dos negros no Brasil. Os
“diferentes” acabam segregados em classes sociais rebaixadas naturalmente já
que não são oferecidas oportunidades para se nivelarem aos caucasianos dominantes.
É satisfatório ver que por trás da aparente inércia este suspense tem muito a
dizer simplesmente trazendo uma problemática social a uma esfera menor, mas não
espere descobrir quem é o vilão da história. Talvez nem mesmo quem seja o autor
das ameaças. Haneke segue suas convenções de apenas incomodar e denunciar,
deixando para o espectador concluir a trama de acordo com seu
entendimento.
Suspense - 113 min - 2005
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