NOTA 7,5 Bom argumento é desperdiçado em produção cujo roteiro foi construído em cima de belas, oníricas e originais imagens |
Cada país pode e deve
produzir os mais variados estilos de filmes, mas sem querer um ou mais gêneros
acabam se tornando a marca registrada do cinema local. Por exemplo, a
cinematografia francesa é muito lembrada pelos romances com toques de
sensualidade ou dramas que carregam na emoção ou na contemplação do silencio no
lugar dos diálogos, mas garimpando sempre é possível encontrar algum tesouro
esquecido nesta filmografia. Uma das obras mais destacadas dos últimos tempos
do cinema francês foi O Fabuloso Destino de Amélie Poulain, uma
obra que rompe com estilos narrativos convencionais, além de apresentar
inovações no processo de edição e o uso de muitas cores em seus cenários e
paisagens. Dirigido por Jean-Pierre Jeunet, certamente o cineasta trouxe para
este seu primeiro trabalho solo muito do que aprendeu trabalhando ao lado do
diretor Marc Caro. Juntos eles revolucionaram a maneira de fazer filmes na
França trabalhando com enredos e visuais criativos capazes de deixar até o
excêntrico Tim Burton com inveja. Uma prova disso está em Ladrão de
Sonhos, uma fábula infanto-juvenil com toques sombrios, mas ainda assim
um tanto onírica. Este tipo de cinema que capta a atenção do
espectador muito pelo visual se tornaria bastante popular nos anos seguintes,
inclusive em solo americano, mas realmente fica difícil definir se o estilo de
Burton influenciou os cineastas franceses neste caso ou se foram eles que
inspiraram o gótico diretor em seus projetos futuros, lembrando que anos antes
Caro e Jeunet já haviam chamado a atenção com a comédia de humor negro Delicatessen. Como sempre dito neste
blog, imagem não é tudo e um bom enredo é preciso para sustentar uma produção.
Você já imaginou o quanto desgastante e sem motivação seria a vida se não
pudéssemos sonhar? É partindo dessa hipótese fantasiosa que os diretores em
parceria com Gilles Adrien desenvolveram o roteiro cujo foco central é o
sofrimento pelo qual passa Krank (Daniel Emilfork), um homem que envelheceu
prematuramente e a cada dia sua própria face deixa transparecer que seu quadro só
vem se agravando. Tal distúrbio ocorre pela incapacidade que ele tem de sonhar e,
na tentativa de achar uma solução definitiva ou ao menos frear a rápida
passagem de sua vida que não acompanha o tempo real, ele passa a sequestrar
crianças para roubar seus sonhos através de uma invenção que criou.
Miette (Judith Vittet), uma
menina criada nas ruas com inteligência muito superior ao que a maioria de sua
idade possui, tenta barrar este plano com a ajuda do caçador de baleias One
(Ron Perlman, muito antes de Hellboy), cujo irmão adotivo e bem
mais novo, o esfomeado Denree (Joseph Lucien), foi um dos sequestrados. No
entanto, estes dois corajosos de personalidades completamente opostas, ele um
grandalhão com alma de criança enquanto ela é uma garotinha que amadureceu
antes do tempo diante dos obstáculos que a vida lhe impôs, nem desconfiam que o
plano de Krank não deu certo. Diante da figura amedrontadora do cientista, as
crianças raptadas não conseguem ter sonhos, apenas pesadelos, o que provoca a
ira do velho precoce. Quem tenta segurar seus ataques são seus subordinados (todos
vividos por Dominique Piñon), criaturas tão estranhas quanto ele que são
criados como se fossem seus filhos adotivos, uma trupe de clones do próprio cientista
que os criou que sofrem da doença do sono. A anã Miss Bismuth (Mireille Mosse),
sua esposa, também criada através de uma clonagem mal sucedida, faz o que pode para
ajudá-lo a superar suas frustrações e conta com os conselhos de um cérebro
falante que vive dentro de um aquário e tem visões através de um aparelho
especial, mas o órgão ironicamente sofre de terríveis enxaquecas que o
atrapalham em suas pesquisas para descobrir como fazer uma pessoa voltar a
sonhar. Por trás de toda esta fantasia, está uma mensagem acerca do crescimento
pessoal diante das experiências, algo que fica claro na relação estabelecida
entre Miette e One que pode até insinuar um sentimento a mais que simples
amizade. A dupla e o conjunto de seres bizarros que compõem a trama ganham
facilmente a simpatia do público e ajudam a dar uma desculpa para continuar
assistindo o filme até o fim já que a o longa é literalmente uma viagem, um
caldeirão de referências narrativas e técnicas visuais que resulta em uma produção
pontuada por bons momentos, mas longe de ser perfeita. A mistura de um cenário
misterioso com personagens que parecem pinçados de contos de fadas, histórias
em quadrinhos, desenhos animados e clássicos da literatura se deve ao fato da
produção ter caprichado na criação dos figurinos, maquiagem e acessórios. Todos
esses elementos foram feitos artesanalmente com materiais simplórios e pouca
computação gráfica foi usada na pós-produção, o que torna a apreciação desta
obra até mais especial. A fotografia e os ângulos de filmagem ajudam a realçar
todos os atributos visuais do longa, sendo possível perceber até mesmo o tipo
de materiais utilizados para a confecção de cada peça, e olha que não são
poucos os detalhes a serem observados.
É interessante reparar
também que durante quase toda a duração do filme um tom esverdeado é
predominante nas cenas, muito por causa da cor da água (provavelmente
contaminada) que compõem boa parte do cenário já que a trama girar em torno de
um homem recluso em uma torre no meio do mar, na realidade, as ruínas de uma
plataforma petrolífera, aquele bom e velho clichê da pessoa com algum tipo de
deficiência que a faz se sentir rejeitada pela sociedade e lhe força a viver
recluso em algum lugar isolado. Como diz o ditado, mente vazia é a oficina do
Diabo e a rotina melancólica de Krank propicia o desenvolvimento de distúrbios
mentais. Essa história que se desenrola em tempo e espaço indeterminados,
provavelmente em um futuro apocalíptico, obviamente não é para todos os
públicos e até mesmo alguns membros de grupos mais seletos não devem aplaudir o
longa ou considerá-lo uma perfeição. É preciso confessar. O enredo é bem
interessante, o visual é deslumbrante, mas o desenvolvimento do texto deixa um
pouco a desejar. Talvez por possuir tantos elementos visuais e muito a ser
explorado em cada fotograma, a obra acaba caindo numa armadilha da própria
originalidade. Prestamos mais atenção nos elementos cênicos e caracterizações
dos personagens do que na história em si. Comumente acabamos entrando em
contato inconscientemente com pensamentos oníricos e quando percebemos a
narrativa caminhou sem acompanharmos seus passos. Apesar de não ser uma
produção longa, o ritmo por vezes arrastado colabora para essa dispersão. Ladrão
de Sonhos é um tipo de produto que deveria se encaixar nos gêneros
filme experimental ou obra de contribuição artística, isso se essas categorias
fossem padrões. Não é um trabalho perfeitinho daquele tipo que você diz que não
há nada fora do lugar, pelo contrário, mas se sua narrativa não é totalmente
satisfatória, só seu visual já compensa e eleva suas pontuações, ainda mais se
levarmos em conta que é um filme independente francês e que utilizou o que
havia de mais moderno no campo dos efeitos especiais da época, porém, com
cautela. No conjunto, a produção é um misto de pesadelo e sonho onde tudo é
possível, criaturas fantásticas podem surgir a qualquer momento e que não tem o
compromisso de ter uma narrativa linear, assim como nossos pensamentos voam
livres enquanto dormimos. Bizarro, inovador, criativo, maluco, sem pé e nem
cabeça, esses são apenas alguns dos adjetivos que se encaixam com perfeição
para resumir esta fábula, tudo depende dos olhos de quem vê. Pena que assisti-la
hoje em dia é difícil. Obviamente é um título que não faz parte do repetitivo
cardápio da TV aberta ou paga e hoje seu DVD está fora do catálogo, mas com
sorte garimpando em boas lojas, locadoras ou sebos é possível encontrar essa
raridade.
Aventura - 108 min - 1995
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