NOTA 7,5 Com apuro técnico digno de clássicos, cinebiografia de um dos maiores gênios das artes perde pontos com o maniqueísmo dos personagens |
As histórias sobre artistas das mais diversas áreas sempre
foram uma excelente fonte de inspiração para o cinema. A trajetória ou
determinado período da vida de vários atores, diretores, músicos e cantores já ganharam
suas versões cinematográficas, mas quando o destaque vai para artistas
plásticos tais produções ganham um charme a mais devido ao colorido das telas
desses gênios da pintura. Assim, a vida artística e profissional de Frida
Kahlo, Jackson Pollock, Michelangelo “Caravaggio”, Francisco Goya entre tantos
outros ganharam suas versões em película carregando em seus títulos nomes de
pesos que já se encarregariam de atrair público, porém, muitas dessas obras não
fizeram o sucesso esperado, nem de crítica tampouco comercial. Este é o caso de Os
Amores de Picasso, obra que acompanha dez anos conturbados da vida de um dos
maiores representantes da arte cubista. A narrativa concentra-se entre os anos
de 1943 e 1953, período em que Pablo Picasso (Anthony Hopkins) se envolveu com
a aristocrata francesa Françoise Gilot (Natascha McElhone). Toda essa história
é contada pelo ponto de vista desta mulher cerca de quarenta anos mais jovem
que o seu mestre que tanto idolatrava, diga-se de passagem, então já um sexagenário.
Contentando-se em se tornar pupila do pintor e ficar mais próxima do mundo das
artes, a garota aceita as traições do companheiro, afinal ela própria ocupava
um dos papéis de amante, assim concomitantemente Picasso manteve
relacionamentos com outras damas como Dora Marr (Julianne Moore), Marie-Therese
Walter (Susannah Harker) e Olga Khokhlova (Jane Lapotaire), então sua legítima
esposa. Coincidência ou não, nenhuma delas teve uma vida feliz e certamente
isso tem a ver com seus relacionamentos com o espanhol este que, por sua vez, abandonou
todas elas sem cerimônias. Apenas Françoise teve coragem de dispensá-lo, sendo
que imediatamente ao fim deste romance ele se juntou à Jacqueline Roque (Diane
Venora), que mesmo sendo tratada como uma serviçal permaneceu com o artista até
ele vir a falecer em 1973.
Ao mesmo tempo carismático e com poder de atração
excepcional, o gênio cubista também é apresentado como um homem dominador,
egocêntrico e até mesmo cruel, tanto com as mulheres quanto com subalternos, o
que é evidenciado nos flashbacks que mostram seus relacionamentos com cinco de
suas setes companheiras (relacionamentos de conhecimento público, fora os casos
mais rápidos e na surdina). Chega a ser difícil imaginar como uma pessoa tão
avessa as relações afetivas poderia ter tanta sensibilidade para deixar
mensagens subliminares em suas obras que para alguns leigos não passam de um
monte de rabiscos. Na época retratada, Picasso estava investindo também em
outros tipos de artes, como a escultura em cerâmica, atividade pouco conhecida
sua, mas que o longa não aprofunda. Entretanto, a opção de enfocar Picasso em
uma fase madura e já tendo seu trabalho reconhecido foge do lugar comum das
cinebiografias que tendem a fazer um dramalhão da história de algum famoso
contando desde sua infância até seu falecimento que, na maioria dos casos,
sempre ocorrem acerca de circunstâncias melancólicas ou trágicas. Todavia, a
quem acuse a obra de reduzir o gênio das artes a um garanhão sem escrúpulos e
de descartar o fato de que no mesmo período retratado ele era perseguido por
nazistas. Foi quando políticos e pessoas influentes tentaram enquadrar seu
estilo de arte a uma estética mais realista. Por conta disso, Picasso não
escondia seu descontentamento e declarava que passou uma temporada no inferno,
mas no pós-guerra seu talento fora reconhecido como até então jamais outro
artista havia sido idolatrado, muito por conta da ascensão de jornais e revistas.
Graças a esses registros visuais, segundo relatos, pôde-se perceber que Hopkins
tem uma semelhança impressionante com o pintor, mas claro que a natureza só deu
uma mãozinha, não fez milagres. O ator usou lentes de contato, dentadura,
maquiagem e emagreceu cerca de quinze quilos para compor o personagem, porém,
está longe de ser uma de suas interpretações mais inspiradas. O problema é que
não ficam visíveis as qualidades de Picasso capazes de fazerem tantas mulheres
se sentirem atraídas e até mesmo se anularem por seu amor. A única que consegue
manter certa distância deste poder de sedução é Françoise, ainda que tenha
convivido por uma década com seu ídolo e tenha lhe dado dois filhos. Ela viveu
uma relação marcada por angústias e dominação, embora seu perfil aristocrático
a impedisse de ser totalmente submissa. Baseado em dois livros, "Minha
Vida com Picasso", de autoria da própria Françoise, e uma detalhada
biografia assinada por Arianna Stassinopoulos Huffington, o roteiro de Ruth
Prawer Jhabvala poderia ser bem mais interessante explorando os atritos e
rompantes de paixão entre o pintor e a francesa, mas ao abordar a relação do
artista com outras mulheres acaba retratando-o de forma estereotipada e
reduzindo as damas a pobre coitadas, o que deixa o enredo maniqueísta.
Esta é mais uma produção que leva a assinatura de James
Ivory e de Ismail Merchant, respectivamente diretor e produtor. Para quem nunca
ouviu falar nestes nomes, eles foram os responsáveis por diversos filmes que
transitaram nas mais diversas premiações entre as décadas de 1980 e 1990,
produções que traziam como características em comum o fato de serem épicas, com
cenários e figurinos requintados, tramas refinadas e elenco talentoso e
renomado, ou seja, produções com estirpe para figurar nas listas dos melhores
de seus respectivos anos de lançamento. Contudo, após o elogiado Vestígios do
Dia, seus trabalhos já não rendiam repercussões e bilheterias como o esperado e
passavam longe das indicações a prêmios. Os Amores de Picasso pertence a fase
de declínio da parceria, porém, julgar seu valor por causa de prêmios não faz
jus a este trabalho que ainda hoje é muito procurado por estudantes e amantes
das artes e cultura. Com um visual belíssimo
e muito sofisticado, o filme tem uma reconstituição de época minuciosa desde a
escolha de um pequeno objeto até a iluminação. Tais cuidados com os detalhes
são típicos dos trabalhos da dupla Ivory-Merchant, mas aqui o apuro técnico é
maior justamente por falar de alguém envolvido com as artes, inclusive há uma
cena que mostra o artista em meio a criação de uma de suas obras mais famosas,
a tela “Guernica” que retrata os horrores da Segunda Guerra. Ironicamente, ao
mesmo tempo Marie e Dora travam uma briga por causa do artista que demonstra
total apatia. Muitos críticos acusam o filme de ser um tanto pretensioso e não
apresentar um enredo substancioso. Esperava-se muito desta obra, já que o
artista espanhol teve uma vida pessoal e profissional muito rica e
contraditória, mas esta homenagem em película fica em cima do muro, não explorando
com perfeição nenhum dos dois lados. Irregular, certamente a propaganda
boca-a-boca atrapalhou o desempenho da fita que arrecadou uma ninharia perto de
seus custos. Ainda assim, é um registro importante para o mundo das artes e
também para a História do cinema, marcando o declínio do modelo de cinema
sofisticado proposto por seus realizadores. Bons tempos, bons filmes...
Drama - 125 min - 1996
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