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sábado, 30 de outubro de 2021

A NOIVA CADÁVER


Nota 9 Obra conquista adultos e crianças com visual nostálgico e gótico e trama criativa e irônica


Filmes sobre almas de outro mundo e cadáveres que saem de suas tumbas para voltar ao mundo dos vivos são coisas para adultos. Bem, para Tim Burton isso não é verdade e tais criaturas apavorantes podem tranquilamente habitar o imaginário infantil. Conhecido pela sua excentricidade e adoração ao gótico, o cineasta imprime seu estilo em uma animação de stop-motion (aquela que anima bonecos quadro a quadro) e chama a atenção não só dos pequenos, que encontram a mistura ideal de humor e suspense que tanto curtem, mas também do público mais velho que se depara com uma história inteligente tingida praticamente de tonalidades escuras e frias. Terror, suspense, comédia, drama, romance, fábula ou fantasia? A Noiva Cadáver é uma mistura perfeita de referências a todos esses gêneros e a opção pelo desenho animado para amarrar tudo isso casa bem com a ideia, ainda mais com a técnica de animação em desuso que dá todo um charme a mais à produção. 

A narrativa se passa em meados do século 19 e gira em torno do franzino Victor Van Dort, um rapaz atrapalhado e muito inseguro que deseja se casar com Victoria Everglot, uma jovem de família tradicional e que é tão tímida quanto o noivo. Na realidade, as famílias de ambos é que fazem mais questão desta união arranjada, já que ambas estão em decadência e enxergam a solução para seus problemas financeiros neste casamento, mas ambas desconhecem a real situação das finanças uma da outra. Sem estes pensamentos egoístas, os jovens realmente acabam se apaixonando, mas Victor coloca tudo a perder quando ensaia seus votos de casamento em um local afastado da cidade. Muito azarado, ele acaba fazendo sua declaração próximo onde repousava o corpo de uma jovem que foi assassinada justamente no dia de seu casamento, assim não realizando seu grande sonho. Emily, conhecida como a tal Noiva Cadáver, então encasqueta que o rapaz deve cumprir seu juramento de amor eterno e se unir a ela. Relutante inicialmente, ele acaba conhecendo um mundo divertido junto aos mortos e surge a dúvida se deve abdicar de sua vida sem graça e aderir a um descanso eterno e feliz ou voltar e cumprir o desejo da família, o que pode significar sua infelicidade e mais uma decepção para a noivinha pálida e gelada. 


Pela sinopse, fica claro que esse projeto é a cara de Burton e ele poderia perfeitamente o ter realizado com atores e cenários reais, mas sem dúvida a opção por uma animação tradicional e nostálgica caiu como uma luva neste caso. Na época do lançamento, os desenhos com tecnologia de ponta já estavam bombando e projetos como este surgiam como sopros de originalidade em meio a um cenário estagnado e habitado por personagens hiperativos e sempre com uma piada na ponta da língua. Já neste delírio mórbido existe um cuidado não só na criação dos personagens, mas também na condução da narrativa e na confecção do visual, o que difere a produção até hoje. A movimentação lenta dos personagens e as tonalidades escuras, em que predominam tons azulados e acinzentados, dão a tônica do início e das últimas sequências do filme, quando o foco está no mundo dos vivos. Já a realidade dos defuntos, na qual a alegria parece não ter fim, ganha cenários coloridos e os personagens, propositalmente exagerados e com características peculiares, se movimentam com maior cadência. A personagem-título é uma super criação â parte. Ao mesmo tempo em que é bizarra com seu corpo semidecomposto, ela também é adorável e passa ares de melancolia e ingenuidade irresistíveis através de seus grandes olhos adornados por uma maquiagem chamativa. 

Inspirado em um conto do folclore russo, os roteiristas Michael Cohn, Pamela Pettler e Caroline Thompson tiveram liberdade para criar e inserir ironias deixando claras as críticas à famigerada felicidade de fachada, como quando a mãe de Victoria afirma não amar o marido e ter se casado por interesses, ressaltando que mesmo assim eles continuavam juntos. Isso talvez por estarem na expectativa de que ainda poderão voltar a ser ricos com o casamento da filha. Assim, de forma leve e divertida, são dadas algumas alfinetadas à sociedade hipócrita de antigamente que preferia ter a todo custo o que não podia comprar ou ostentar um sobrenome famoso ou nobre do que assumir sua verdadeira face e manter a dignidade. Visto por esse viés, atualmente ainda temos adeptos desse pensamento arcaico e a crítica se faz contundente e necessária, sobretudo para ensinar algo ao público infantil, embora muito provavelmente os adultos precisem decodificar tal mensagem primeiro. Alguns podem até vir a se ofender com a compreensão. Por mais fantasiosos que seus trabalhos pareçam, Burton sempre deixa alguma crítica social implícita, sendo a mais habitual o tratamento dado aos seres que se sentem deslocados no meio em que vivem. Victor se acha um estranho no mundo dos vivos, pois lhe exigem muito e poucos se interessam pelos seus sentimentos ou vontades, ao contrário do que acontece no além onde é bem recebido, se diverte e finalmente é compreendido. 


Com A Noiva Cadáver uma nova geração passou a se acostumar com o jeito bem humorado de lidar com esquisitices e mistérios de Burton e a corrente continua com a constante renovação de público que no caso do cineasta não parece substituir admiradores, mas sim somar mais e mais deles. Entretanto, não é correto encobrir que o filme foi codirigido por Mike Johnson. O idealizador do projeto estava envolvido com as filmagens do remake de A Fantástica Fábrica de Chocolate e se reunia com o pupilo quase que diariamente para aprovar e supervisionar o andamento dos trabalhos. Contudo é difícil não rotular a animação, enquadrá-la em uma grife. Tudo aqui é puro estilo Burton de fazer cinema, só falta sua assinatura no rodapé de cada cena. Embora o desfecho não surpreenda, o conjunto todo é muito agradável e cumpre um dos objetivos principais do cinema: fazer o público esquecer por algum tempo a cinzenta realidade embarcando em uma colorida fantasia. Esse efeito escapista está bem explícito aqui tingido com cores fortes e em prosa que exalta a vida, inclusive a que possivelmente existe após a morte. Aos que repudiam espiritismo e afins, não se preocupe, em nenhum momento você se sentirá pressionado a acreditar em nada, exceto que você deve viver o máximo em vida e como desejar.

Animação - 77 min - 2005

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