NOTA 7,5 Mais um filme procura expor os horrores da guerra tendo como protagonista um homem cuja obsessão se tornou seu pesadelo |
Os
horrores da guerra já foram retratados das mais variadas formas pelo cinema e
desde os mais famosos até relativamente desconhecidos conflitos já tiveram
espaço na sétima arte. O resultado é que com tantas produções com temáticas
parecidas muitas acabam passando despercebidas, principalmente se não tiverem
ao menos um ator de peso encabeçando o elenco e/ou um diretor renomado
assinando o projeto. Por isso chama a atenção o ostracismo vivenciado por Testemunhas
de Uma Guerra, drama protagonizado por Colin Farrell, então já
reconhecido por seus dotes dramáticos e com aval da crítica, e dirigido pelo
bósnio Danis Tanovic cujo nome teve projeção internacional após a conquista do
Oscar de Filme Estrangeiro por Terra de
Ninguém, mais uma produção com a temática guerra. Abordar conflitos do tipo
parecem a especialidade do cineasta que neste caso conseguiu fazer um eficiente
drama que reflete duas realidades que por vezes não são noticiadas pelos
veículos de comunicação: a dura vida de quem precisa registrar as atrocidades
das guerras e o dia-a-dia de quem deveria estar lá para salvar vidas, mas
diante das dificuldades se vê obrigado a escolher quem terá direito a uma
segunda chance. Triagem (“Triage” é o título original) é o nome dado ao
processo de seleção que os médicos usam em situações de emergência para
priorizar o atendimento dos mais necessitados. Geralmente quem procura
atendimento em pronto-socorros passa por essa pré-seleção e os doentes mais
graves têm preferência de atendimento (teoricamente as coisas deveriam
funcionar assim), mas nas guerras as coisas funcionam diferentes. Com recursos
escassos, os médicos acabam atendendo os feridos com maiores chances de
sobrevivência e deixando os de estado grave por último na fila de atendimento
para não desperdiçarem material, o que fatalmente os levam ao óbito. Situações
como essas é que servem de base para o roteiro criado pelo próprio cineasta que
coloca Farrell na pele do fotógrafo Mark que é viajo ao Kurdistão na companhia
do amigo também fotógrafo David (Jamie Sives). A trama se passa em meados dos
anos 80, época marcada no país pelos conflitos entre a classe trabalhadora e o
governo turco, este que não reconhece a existência da etnia curda. Durante
semanas a dupla registrou com suas câmeras os processos de triagem e
conversaram com os médicos a respeito. Além das imagens estarrecedoras, os
depoimentos também eram assustadores, alguns profissionais inclusive relatando
que não bastava excluir os doentes mais graves da lista de atendimento,
precisavam eles mesmos sacrificar homens para poupar seus sofrimentos de
esperar a morte que poderia ocorrer em questão de pouquíssimos dias ou até
mesmo minutos.
Mark
é um viciado por adrenalina, situações de risco e quer ir além do trabalho
proposto. Ele almeja fama e a chance de realizar seu sonho de trabalhar em um
conceituado periódico e para isso está focado em fotografar imagens violentas e
desagradáveis, acreditando que a coragem para tanto pode lhe trazer status na
profissão. Já David prefere fotografar momentos belos ou raros e está sempre a
procura de uma imagem inusitada mesmo em lugares onde a calamidade impera,
porém, está cansado de seu trabalho principalmente agora que está vivendo um
momento sublime de sua vida prestes a ser pai pela primeira vez. Os dois
faturam vendendo as fotos, não possuem chefe fixo e tampouco um salário
assegurado, mas têm a liberdade de escolherem os trabalhos que querem realizar.
Quando ocorre a primeira ofensiva iraquiana os amigos acabam se desentendendo
por divergências de ideias e David decide não correr mais riscos e ir embora.
Mark opta por enfrentar os perigos, mas acaba se ferindo e ficando um tempo na
enfermaria de um campo de concentração onde conhece ainda mais de perto o
difícil trabalho dos médicos militares conversando com o Dr. Talzani (Branko
Djuric), incluindo as citadas execuções de soldados e civis gravemente feridos.
Quando volta para casa, ele está completamente transtornado e muitos quilos
abaixo de seu peso normal, mas seu estado piora ao saber que David mesmo tendo saído
do Kurdistão dias antes jamais havia retornado para sua casa deixando sua
esposa Diane (Kelly Reilly) apreensiva. Claramente depressivo, Mark preocupa a
mulher Elena (Paz Vega) que recorre ao pai Joaquín Morales (Christopher Lee),
um polêmico psicólogo que surge pouco tempo na tela, mas sua participação é
fundamental para termos ideia do que os rapazes vivenciaram durante a estadia
no país árabe. Este profissional era no passado um torturador de guerra, motivo
que o afastou da filha, mas uma situação que o ajuda a compreender o estado do
genro e a apontar caminhos para ele seguir sua vida adiante. É graças as
sessões de terapia, ou conversa informal se preferir, que o grande mistério
envolvendo David é revelado (uma conclusão que surpreende) e ficamos sabendo de
episódios curiosos como quando Mark tentou ajudar uma nativa a encontrar o
crânio do marido em meio a uma montanha de ossos. Obviamente o rapaz entregou
para a mulher qualquer um e mesmo assim ela pareceu satisfeita, mas segundo o
psicólogo o agradecimento foi por conta da atenção que ele dispensou a ela,
como se fosse um reconhecimento de que ela era um ser humano comum, justamente
o motivo que deflagrou o conflito entre curdos e turcos que serve como pano de
fundo desta narrativa.
Baseado
no livro do escritor Scott Anderson, Tanovic, que antes de explorar o campo das
ficções atuou como documentarista, conseguiu realizar neste caso um trabalho
que consegue flertar com as duas formas de se fazer cinema. Paralelo ao
envolvimento gerado pelo drama do protagonista também estamos acompanhando um
intenso choque de realidade, uma aula sobre coisas que não aprendemos no
colégio, mas sim a vida nos ensina: a lei do mais forte. Se você demonstra
aptidão para se levantar após uma derrota terá ajuda, mas se demonstrar
entregue ao fracasso quem apostará na sua recuperação? O próprio contraponto
entre David e Mark, a discussão quando um deles resolve abandonar o trabalho,
serve para justificar este pensamento, apesar de um deles voltar extremamente
machucado pela guerra, não tanto fisicamente, mas sim emocionalmente. O longa
poderia ser resumido como a exemplificação do que as várias atrocidades de
eventos tão traumatizantes podem causar nas pessoas. Não raramente os danos psicológicos
são mais graves que os físicos e Farrell consegue transmitir com eficiência a
sensação de um homem transtornado e cujas expectativas positivas para a vida
são resumidas a quase nada após tantas barbaridades que viu e constatar que
realmente basta estar vivo para morrer. O ator acostumado a exibir um porte
atlético deixou as vaidades de lado e provou honrar a profissão. Para dar
veracidade ao personagem ele emagreceu cerca de vinte quilos, está longe de
exibir seu habitual visual de galã e sem dúvidas é sua interpretação contida e
carregada de sentimentos negativos que seguram as pontas da obra, envolvendo o
público e instigando-o a querer descobrir qual episódio realmente levou Mark ao
seu estado depressivo. Seu acidente? O sumiço de David? As mortes gratuitas? A
miséria do povo curdo? O mais certo é que a somatória de tudo isso o levou a
tal quadro deprimente. Não é errado dizer que o protagonista funciona como
alter ego do diretor. É como se suas experiências e sentimentos refletissem os
pensamentos de Tanovic que lança sobre a guerra um olhar de voyeurismo, mas ao
mesmo tempo crítico. Mark é tentado a fotografar a violência e a crueldade, mas
como resultado acaba sendo vítima de seu fanatismo, ao contrário dos médicos
que conheceu nos campos que precisam ter sangue frio e sentimentalismo nulo
para se sentirem no direito de decidir quem deve viver ou não, mas mais cedo ou
mais tarde fatalmente sentirão os efeitos negativos de seus atos, como o
próprio Joaquín que acabou tendo um relacionamento conturbado com a filha,
embora um viés mal trabalhado. Testemunhas de Uma Guerra não é
perfeito, principalmente pelas tramas dos coadjuvantes mal conduzidas, mas
cumpre seu objetivo de nos fazer refletir sobre a ignorância das guerras, como
a intolerância pode ser responsável por tantas tragédias. Pior ainda é
constatar que o tempo passa e os problemas étnicos continuam gerando conflitos
e sociedades que acreditam que o tom de pele, religião, cultura e outras
peculiaridades podem definir quem merece ser visto como ser humano e quem
merece ser exterminado. Como é citado a certa altura do longa, em outras
palavras, só os mortos é que conseguem ver o fim das guerras. Os vivos
infelizmente parecem fadados a conviver com esse mal eternamente.
Drama - 99 min - 2009
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