NOTA 10,0 Embora para muitos seu valor tenha diminuído com as reprises na TV, esta fantasia ainda diverte e emociona como poucas obras |
Qualquer pessoa que conheça o
mínimo possível de cinema sabe que a parceria do diretor Tim Burton e do ator
Johnny Depp é uma das mais longas e produtivas de todos os tempos. É um
daqueles raros encontros cuja emoção ultrapassa os limites da ficção e mesmo
quando o filme não é lá grande coisa os fãs da dupla estão apostos para
exaltá-lo afinal este seria mais um tijolinho a reforçar esta sólida amizade e
é um prazer inenarrável ser testemunha sentimental da construção desta relação,
ainda mais sabendo que nos bastidores desta indústria a guerra de egos é
intensa e os amigos da onça existem em peso. Esta trajetória começou no
início dos anos 90 e provavelmente no futuro deve render alguma homenagem
cinematográfica afinal ambos têm carreiras com projetos interessantíssimos e
eles próprios são figuras que despertam curiosidades. Revisitar tal história é
delicioso, ainda mais se voltarmos ao início de tudo. Burton é um cineasta que escreveu sua trajetória no cinema
na base de bizarrices praticamente. Dono de um visual um tanto excêntrico e
adepto do estilo gótico para ornamentar seus trabalhos, o campo do terror e do
suspense poderia ser seu habitat natural, mas não é bem assim. Apesar de já ter
trabalhado com histórias de arrepiar, o que ele mais gosta mesmo é de fazer as
plateias sonharem de forma diferenciada. Com muita sinceridade e sensibilidade
o diretor já conseguiu construir verdadeiros clássicos das sessões da tarde que
agradam a todas as idades, desde crianças bem pequenas até os idosos, e sempre
imprimindo suas marcas. Dificilmente alguém não tenha a
lembrança de ao menos uma vez na vida ter esperado com ansiedade a exibição na
TV ou ter entrado na fila de espera da locadora para assistir Edward
Mãos de Tesoura, um daqueles filmes que marcam época mesmo contando uma
singela e até certo ponto previsível história. É óbvio que aqui também faz
diferença o apuro visual, mas esqueçam os efeitos especiais mirabolantes. A
magia desta produção se concentra em seu aspecto artesanal, atestando que tudo
realmente foi feito por mãos talentosas e precisas. O cineasta demonstra criatividade
para mesclar a fantasia e referências cinematográficas e literárias de forma
que até o público infantil se sentisse atraído para entrar nesse misterioso e
fascinante mundo, não se assustando nem mesmo com os primeiros minutos que são
mergulhados em uma atmosfera dark. Todavia, o tom de fábula está presente em
todas as sequências do filme, a começar pela opção de uma senhora de idade logo
na introdução passar a contar para a neta a história do personagem-título como
se fosse um conto de ninar. A cidade onde a trama se passa parece um paraíso,
os vizinhos se dão bem, as casas são bonitas e padronizadas e seus moradores em
geral são estereotipados propositalmente, cada qual com um papel bem delineado.
Tem a mulher bondosa, a sedutora, a gordinha fofoqueira, o jovem valentão, a
mocinha romântica... O que tira o projeto da mesmice é justamente seu
protagonista cuja personalidade, postura e visual destoam totalmente do
restante da população provinciana. Pode-se dizer que tal criação seria uma
metáfora, um grito para chamar a atenção. Ainda tentando ter seu trabalho
aceito pelo mercado cinematográfico, Burton na época se sentia um esquisitão no
meio, mas não se rendia as exigências de Hollywood e tocava sua carreira com
projetos pessoais e correndo atrás dos recursos financeiros.
Depp, em sua primeira parceria com o cineasta e em um de
seus primeiros trabalhos de grande projeção, dá vida a Edward, cuja história
lembra um pouco a outras tramas clássicas que já ganharam diversas adaptações
cinematográficas como Frankenstein ou A Bela e a Fera. Estes contos têm em
comum o fato de seus protagonistas possuírem bom coração e de certa forma serem
ingênuos, mas acabam sendo vistos como monstros devido as suas aparências, algo
reforçado pelo comportamento recluso que praticam, todavia, eles são seres
incompreendidos e que preferem se esconder a enfrentar o preconceito. Edward
vive a mesma situação. Seu criador, interpretado pelo lorde dos filmes antigos
de horror Vicent Price em sua derradeira atuação, vivia isolado em um castelo
no alto de uma montanha e passava seu tempo inventando coisas. Sua obsessão era
criar um ser humano praticamente perfeito, mas acabou falecendo antes de
completar seu último projeto, assim Edward foi obrigado a aprender a conviver
com afiadas lâminas no lugar de suas mãos. Apesar da aparência estranha, pálida e com cabelos desgrenhados,
características que curiosamente se assemelham ao visual do próprio Burton, o rapaz é muito dócil, educado, mas qualquer contato com ele pode
oferecer perigo, porém, não seria sua culpa, apenas um acidente
ocasional. Bem, fazer
mal a alguém seria muito difícil afinal ele passou boa parte do tempo de sua existência trancado no castelo descobrindo um
talento especial para cortar as coisas, assim criando um belíssimo e inovador
jardim que ele mantém há anos podando cada árvore ou planta em formato de
esculturas, uma febre que tomou conta dos jardins de muitas residências no
início da década de 1990, ainda que o longa não deixe especificado em qual
época a ação é desenvolvida. Mas voltando ao enredo, a vida de Edward muda completamente quando Peg Bobbs (Dianne
Wiest), bate à sua parte. Ela é uma vendedora
de cosméticos que fica com pena do rapaz e resolve ajudá-lo levando-o para sua
casa. Assim ele
troca sua melancólica e escura residência pela colorida e agitada vizinhança
que o cercava há anos e que só podia admirar a distância. Como é de praxe,
assim que Peg chega em casa acompanhada de seu convidado a fofoca rola solta
até que finalmente os vizinhos conhecem o rapaz que inicialmente é visto como
uma novidade e tanto, um evento capaz de quebrar a rotina tediosa da cidade. A partir daí o roteiro segue a linha tradicional
de qualquer história que tenha como mote principal a inclusão do diferente em
uma sociedade padronizada. O ser esquisito se sente um peixe fora d’água,
arruma confusões, atrai atenções de alguns e desperta a raiva de outros, no
caso, os homens da pacata cidadezinha que ficam com ciúme do sucesso de Edward
junto as mulheres. Logo seu talento com suas mãos
privilegiadas é descoberto e seus cortes de cabelo literalmente passam a fazer
a cabeça da mulherada, mas infelizmente não demora muito para o preconceito vir
a tona. Edward acaba se apaixonando por Kim (Winona Ryder), filha de sua
protetora, e em nome desse sentimento e até por ingenuidade o rapaz acaba se
metendo em uma confusão e imediatamente começa a ser apontado como uma ameaça a
paz de todos. Embora
muitas situações que recheiam o longa sejam um tanto clichês (talvez na época
não fossem), Burton consegue trabalhar com elementos que acabam encantando o
espectador que embarca facilmente nessa fábula. E é quase impossível pensar em
algum outro ator contemporâneo a Depp para dar vida a uma criatura tão ambígua,
que ao mesmo tempo que assusta também cativa com seu olhar inocente. Mesmo
balbuciando algumas poucas palavras durante toda a projeção seu personagem
seria uma verdadeira prova de fogo para qualquer ator. É muito difícil impor
sua presença como protagonista quando o próprio personagem se sente um
figurante no dia-a-dia daqueles que o cercam.
Comédia - 105 min - 1990
Disse tudo: parceria perfeita e filme que realmente marcou......a minha geração foi movida por essa pequena obra de arte.
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