NOTA 8,0 A Xangai da década de 1930, efervescente e conflituosa, é o cenário de uma história de amor que une dois desiludidos |
Estamos acostumados a atribuir somente ao diretor
geral os créditos dos filmes. Raramente os nomes dos roteiristas são
ostentados, salvo quando também comandam as ações nos sets de filmagens.
Produtores até que nos últimos anos têm sido lembrados, principalmente para
ajudar na venda de filmes lançados diretamente em DVD fazendo referências a
sucessos do cinema destes profissionais, o que geralmente engana o espectador
que acaba por fazer associações positivas entre as citações e os produtos que
nem sempre podem corresponder as expectativas. Nos últimos anos, entre os
produtores de cinema destacaram-se os nomes de Bob e Harvey Weinstein, dupla
que em pouco mais de uma década conseguiu transformar o cinema independente e
fora de Hollywood no biscoito fino das principais premiações, tanto que antes
da produtora Miramax ser adquirida pela gigante Disney eles conseguiram somar
mais de uma centena de indicações e
dezenas de estatuetas do Oscar. Curiosamente, pouco tempo antes da dupla
sacudir o cenário cinematográfico um outro produtor era sinônimo de cinema de
qualidade e digno de prêmios, mas seu nome sempre estava atrelado ao de um
diretor específico. Grandes trabalhos que marcaram os anos 80 e o início dos
anos 90, como Uma Janela Para o Amor e Retorno a Howards End,
levavam nos créditos a grife Merchant-Ivory, ou seja, a assinatura do indiano
Ismail Merchant como produtor e a do californiano James Ivory como diretor. A
dobradinha foi repetida diversas vezes e sempre que um novo produto com a marca
dava sinais de vida já começavam as especulações sobre possíveis prêmios,
afinal suas obras ficaram conhecidas por sem dotadas de bons enredos, elencos
competentes e plasticidades impecáveis. O problema é que após o ano de 1993,
quando emplacaram Vestígios do Dia, a grife começou a dar sinais de
desgaste e suas produções já não chamavam tanto a atenção como antes,
coincidindo com a entrada maciça dos Weinsteins no mercado. A Condessa
Branca é a derradeira obra de Ivory em parceria com Merchant, este que
veio a falecer pouco tempo depois da conclusão das filmagens. Lançado
diretamente em DVD no Brasil e sem repercussão ou publicidade, este competente
e envolvente drama de época não merece tal desprezo, mesmo com a duração acima
da média e o estilo convencional e acadêmico já tradicional da dupla. Não por
acaso a obra nos remete a clássicos como Casablanca.
Após amargar o fracasso de À Francesa, comédia
dramática contemporânea com a dupla talvez tentando angariar um novo público
para restabelecer com força a grife, os profissionais foram sensatos e voltaram
ao gênero que compartilham intimidade, mesmo porque eles já não eram mais
jovenzinhos com tempo para errar e talvez sem perceber construíram suas
carreiras de forma que equívocos não poderiam ser tolerados, seja por parte do
mercado, do público ou do ego deles mesmos. Da safra dita ruim, que conta com
dramas com personalidades históricas como Jefferson em Paris e Os
Amores de Picasso, eles podem não ter feito fortunas tampouco colhido prêmios
e elogios, mas mantiveram-se fiéis as suas essências e ideais. Acostumados a
lidar com adaptações literárias, um dos méritos deste derradeiro trabalho da
grife é o fato do roteiro ser uma criação original de Kazuo Ishiguro que usa um
pano de fundo histórico para desenvolver uma narrativa tipicamente
folhetinesca, de quebra introduzindo algumas referências que de certa forma
homenageiam a História do cinema, principalmente as produções épicas das
décadas de 1930 à 1950, sobrando lembranças até para musicais. Se já não fosse
o bastante a curiosidade em descobrir a última obra de uma mítica união do
universo cinematográfico, este trabalho ainda presenteia o espectador com a
oportunidade de acompanhar o desempenho de três mulheres de uma mesma família,
as já falecidas Natasha Richardson e Lynn Redgrave, além da veterana e premiada
Vanessa Redgrave. Nos anos 30, a cidade de Shangai, embora glamourosa e um
efervescente pólo cultural, está passando por um período político conturbado
que acaba influenciando no cotidiano de toda a sociedade local. A condessa
Sofia Belinskya (Natasha), uma imigrante russa, está precisando se apresentar
como dançarina ou até mesmo se prostituir nos cabarés para poder sustentar sua
família formada por pessoas que ainda insistem em manter seus antigos padrões
de vida e seus títulos de nobreza mesmo agora que estão na miséria após serem
banidas de seu país-natal como consequência da revolução socialista. Certa
noite, esta mulher conhece Todd Jackson (Ralph Fiennes), um diplomata americano
que acabou ficando cego em um acidente. Muito recluso e de poucos amigos, ainda
assim ele continua um apaixonado pelos prazeres da vida noturna e sonha em ter
seu próprio cabaré. Seu desejo torna-se realidade graças a uma aposta e com a
ajuda de um misterioso amigo japonês, o espião Matsuda (Hiroyuki Sanada), e
assim surge “A Condessa Branca”, a casa noturna que promete dar um respiro ao
claustrofóbico dia-a-dia que Xangai vivia. Para fazer jus ao nome escolhido,
nada melhor então do que ter uma legítima condessa fazendo as honras do
estabelecimento e assim Sofia e Todd estreitam os laços de amizade que não
tardam a se transformar em paixão.
A relação entre Sofia e Todd é intensificada pela
identificação que um sente pelo histórico de vida do outro. São duas pessoas
refugiadas em um país com cultura completamente diferente das suas e que
almejavam uma vida melhor, mas estão decepcionados. Ela é viúva e com uma filha
para criar, a pequena Katya (Madeleine Daly), além de aguentar as críticas e a
arrogância de sua mãe Vera (Vanessa) e de sua tia Olga (Lynn), duas mulheres
que não se conformam que seus títulos de nobrezas russos não imponham mais
respeito. Ele, por sua vez, chegou a Xangai muitos anos antes e com muito
otimismo, mas se decepcionou com as questões políticas locais. Aliás, a
cegueira do personagem tem significados simbólicos na trama, e não só
emocionais tendo relação também com o campo político, assim como os diversos
personagens coadjuvantes e até mesmo figurantes estão presentes para apresentar
uma síntese do grupo de habitantes de Xangai em tal época tão turbulenta,
realçando suas vontades e aflições. O perfil dos protagonistas já é o
suficiente para chamar a atenção dos apreciadores de grandes romances e também
daqueles que buscam nos personagens subsídios para enriquecerem-se
culturalmente, mas os papéis secundários também são extremamente interessantes.
Por exemplo, o Sr. Matsuda é aquele tipo de personagem que você não consegue
logo de cara rotulá-lo. Ele é um representante da expansão japonesa em voga na
época, mas em diversos momentos não parece ser regido pela razão ou interesses
materiais, tanto que serve como uma espécie de confidente de Todd e ajuda na
aproximação do diplomata e da condessa. Vera e Olga não estão na trama apenas
para pintar um retrato da aristocracia decadente e ressentida, mas terão grande
importância na reta final marcado por grandes conflitos da China contra o
exército japonês, momento em que numa ação fria as duas acabam se opondo ao
casal protagonista. A Condessa Branca é um belo exemplar de produções mais recentes
que tentam buscar a grandiosidade dos dramas românticos do passado apostando em
uma caprichada reconstituição de época. Como de costume nas produções
Merchant-Ivory, que conseguiram levar o cinema clássico em seu melhor estilo às
platéias mais populares, a fotografia, a trilha sonora, os figurinos e a
direção de arte são de um esplendor inquestionável, com o detalhe que esta obra
é repleta de cores, uma reconstituição de cenários um pouco mais estilizada que
de costume no currículo desta dupla de amantes da sétima arte, pessoas que sem
dúvida escreveram seus nomes nesta História fascinante de como levar emoção às
pessoas. A parceria terminou com um trabalho com direito até a alguns números
musicais estratégicos e um final bastante romanceado, de certa forma um festejo
involuntário para encerrar um “casamento” que deu certo por mais de 40 anos.
Drama - 135 min - 2004
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