Nota 8 Lendário assassino promove vingança com toques de humor negro em musical atípico
Mesclando um pouco das tradições do gênero musical a generosas doses de ousadia e morbidez, Tim Burton surpreende com Sweeney Todd – O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet, um sombrio, mas ao mesmo tempo divertidíssimo passatempo. Os elementos fantásticos comuns em sua filmografia encaixaram-se perfeitamente neste universo que alia humor negro, estilo gótico, personagens excêntricos e situações macabras. O longa é baseado na obra original de Hugh Wheeler e também no musical da Broadway criado por Stephen Sondheim no final da década de 1970 que narra a história de um barbeiro assassino, um personagem que ao que tudo indica existiu realmente e povoa o imaginário popular inglês desde o início do século 19. Hoje tal conto já é conhecido mundialmente, tendo inspirado diversos livros, espetáculos teatrais e filmes, mas nas mãos de Burton é como se o texto finalmente ganhasse sua versão definitiva. Benjamin Barker (Johnny Depp) passou quinze anos afastado de Londres após ser obrigado a abandonar sua esposa Lucy (Laura Michelle Kelly) e a filha, ainda um bebê de colo, mas ele está de volta ávido por vingança, ainda mais agora sabendo que seu grande amor se suicidou e a filha foi adotada pelo juiz Turpin (Alan Rickman), o mesmo homem que o condenou a extradição por um crime que não cometera, tudo para ter a chance de ficar com sua mulher.
Usando o pseudônimo de Sweeney Todd, logo o amargurado faz amizade com a Sra. Nellie Lovett (Helena Bonham Carter), a dona de uma miserável loja de tortas. Na realidade a cozinheira já o conhecia, o observava a distância e aparentemente já se sentia atraída pelo seu tipo excêntrico, característica que compartilha. Com seu talento inegável para manejar navalhas, Todd decide abrir uma barbearia no andar de cima do restaurante, mas o acordo que ele faz com a proprietária é um tanto bizarro: ele atrai os clientes para fazer a barba, degola aqueles que julga merecer tal castigo e despacha os corpos para a cozinheira fazer os recheios de suas tortas. Curiosamente, após o acordo o negócio de Lovett deslancha e seus quitutes passam a fazer sucesso. Enquanto ela lucra, Todd sacia sua sede de vingança decidindo que não é apenas um ou outro homem que merece morrer pelas suas navalhas, mas todos os londrinos merecem tal execução, afinal ninguém o defendeu no passado da tal injustiça que sofreu. Para não cair na maçante armadilha das atenções se voltarem apenas ao contexto vingativo e canibal da trama, temos um paradoxo entre o amor e a morte que impulsiona o espetáculo alternando momentos de ternura com outros de explosão de raiva, uma dinâmica que ajuda a dar ritmo à obra.
A Sra. Lovett de certa forma ama seu sócio e o juiz Turpin ousou amar quem não poderia correspondê-lo, mas o sentimento de paixão é mais evidente na subtrama do marinheiro Anthony (Jamie Campbell Bower), que encontrou Todd no mar e o levou até Londres, e a jovem Johanna (Jayne Wisener), a filha que barbeiro não viu crescer. O casal de enamorados entoa as canções mais singelas (ainda que o rapaz exagere na sua declaração de amor), um contraponto aos lamentos e palavras ásperas que saem da boca do protagonista que consegue transmitir pelo seu tom de voz e olhares toda a fúria enclausurada dentro de si e nos momentos certos deixar latente a sensibilidade resguardada. Depp foi convidado para participar antes mesmo de provar se poderia cantar já que o diretor confiava cegamente em seu potencial para encarnar figuras antológicas e esquisitíssimas. Todd é mais uma para a ilustre galeria. É bizarro, tem um visual impactante e o diferencial de mostrar o talento vocal do ator, ainda que alguns digam que ele só conseguiu o papel pela amizade com o diretor e por seu nome ser sucesso entre as plateias mais jovens que poderiam ser avessas ao estilo musical adotado para um filme de terror. Mesmo provocando alguns momentos de humor involuntários, no entanto, a obra até poderia ser classificado como um drama, afinal não se pode negar que o ressentido barbeiro é uma pessoa sofrida, tanto que sua vida fica sem sentido até mesmo quando chega ao ápice de sua vingança.
A sexta parceria da dupla Burton/Depp é também a terceira em que a música tem uma função maior nos filmes do diretor. Em A Fantástica Fábrica de Chocolate e A Noiva Cadáver (com Depp atuando e dublando respectivamente), Burton flertou com o gênero musical, intercalando as tramas com músicas ou refrãos cantarolados, mas ainda assim os diálogos eram indispensáveis. Assumindo a condução de um musical de verdade , o tom escolhido é quase como de uma ópera com as letras das canções, basicamente as mesmas compostas para a peça da Broadway, literalmente substituindo as falas dos personagens praticamente durante toda a duração do longa. De qualquer forma, roteirizar uma história era indispensável e coube a John Logan a tarefa de criar alguns poucos diálogos livres e alinhavar as músicas. O problema é que quando um filme tem suas raízes mais fortes em um espetáculo teatral, no qual já foi desenhado todo um universo, fica difícil procurar caminhos diferenciados, tanto que outras versões cinematográficas da história do barbeiro assassino vivem no completo ostracismo. Sweeney Todd – O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet só escapou do limbo por conta dos nomes famosos envolvidos e por alguns prêmios que concorreu, mas não faltaram críticas negativas, ainda que a imprensa tenha sido razoável com os comentários.
É inegável que o trabalho acumula falhas, muito por conta da cantoria incessante que a certa altura cansa. O pior é que do conjunto todo não se sobressai nenhuma canção para imortalizar a obra em nossas memórias, mas um musical tradicional definitivamente não era o que Burton almejava. Para falar de pessoas que agem de acordo com os instintos mais primitivos que o meio em que vivem lhe despertam, o cineasta procurou despir de glamour a Inglaterra do período vitoriano, época propícia para as lendas urbanas de seriais killers e criaturas soturnas, e apresenta o ambiente londrino dotado de características desprezíveis e obscuras, uma visão cinzenta tal qual o protagonista enxerga a cidade em seu regresso. As cores mais fortes e vivas só entram em cena quando a quituteira vislumbra seu futuro, nos momentos em que é explorado o passado de Todd e obviamente quando um vermelho vibrante surge nos corpos de suas vítimas. O contraste entre o rubro e o negro é de encher os olhos e ganha potência máxima aliado aos cortes perfeitos de edição e aos efeitos sonoros. Burton explora ao máximo o estilo gótico e passeia livremente com sua câmera pelos cenários a fim de transportar o espectador para outro universo. Apesar de todas as qualidades reunidas, realmente é uma produção do tipo ame-a ou odeie-a, não há meio termos, e infelizmente neste caso Burton e Depp não foram poupados nem mesmo por seus fãs mais fervorosos.
Vencedor do Oscar de direção de arte
Musical - 116 min - 2007
Burton, como sempre, fascinante. Depp, idem.
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