NOTA 8,0 Drama tem momentos de humor graças aos absurdos que podem acabar com um casamento devido a conflitos étnicos e políticos |
Tem gente que
sonha com festas de casamento, aniversários, reuniões de fim de ano, enfim
qualquer tipo de festejo. Para outros tais eventos são sinônimos de estresse e
confusão, principalmente quando há familiares envolvidos, mas só o fato de
estar em um ambiente onde provavelmente poucos convidados se conhecem ou existe
algum tipo de conflito mal resolvido já gera certa tensão. O cinema sempre
gostou de explorar estes tipos de problemas caseiros que podem acabar mal ou
simplesmente ficarem como uma lembrança hilária na memória de que os vivenciou,
neste caso um prato cheio para fisgar a emoção do público que facilmente se
identifica com a narrativa. Bem, o início de A Noiva Síria sugere algo
singelo assim, mas conforme a trama avança se torna algo bem mais sério e
relevante. Desde os atentados de 11 de setembro de 2001 o Oriente Médio como um
todo tem chamado a atenção e coube ao cinema a função de quebrar a imagem que
boa parte da população mundial passou a alimentar da região. Por lá não existem
apenas guerras sangrentas e homens-bombas, porém, a cultura local é um tanto
exótica e curiosa. Você sabia que existem pessoas que se comunicam através de
megafones porque não podem ultrapassar territórios demarcados? Que para
conseguir atravessar essas áreas é preciso vencer uma série de burocracias? Que
existe um povo que não tem nacionalidade definida? E você aceitaria se casar
com alguém que nunca viu e, pior ainda, abrir mão de sua própria família por
conta deste ato? Parece coisa de décadas atrás, mas por incrível que pareça
ainda é uma realidade e é em torno destas peculiaridades que gira o filme do
israelense Eran Riklis, de Lemon Tree,
um agradável drama com alguns toques involuntários de humor. Coproduzido entre
França, Israel e Alemanha, a trama roteirizada pelo próprio cineasta em
parceria com o palestino Suha Arraf se passa na fronteira entre Israel e a
Síria, nas colinas de Golan, região habitada pela comunidade drusa Majdal
Shams, um povo cuja nação não é definida, mas vive sob o domínio israelense
desde 1967. Qual a importância disso? Simplesmente tal povo fica em meio a um
fogo cruzado entre muçulmanos e judeus e entre eles mesmos há uma divisão entre
simpatizantes de cada um desses lados. É justamente nessa área que estão
acontecendo os preparativos para o casamento de Mona (Clare Khoury), uma jovem
drusa que vive na parte israelense. O evento está mobilizando todas as
atenções, principalmente de seus familiares, e o longa concentra suas ações
neste único dia a partir das poucas horas que antecedem a cerimônia que será
realizada de forma pouco convencional.
Hammed (Makram
J. Khoury), o pai da noiva, é um homem muito respeitado no vilarejo e está em
liberdade condicional devido ao seu engajamento em atividades políticas, mas
parece não ter juízo e já está envolvido em uma nova manifestação, mesmo
sabendo que também está proibido de se aproximar da fronteira onde será
realizada a cerimônia de casamento. Ele há anos está afastado de seu filho mais
velho, Hattem (Eyad Sheety), este que o afrontou ao abandonar a família para se
casar com uma médica russa, Evelyna (Evelyn Kaplun), porém, com o casamento de
Mona chegou a hora do inevitável reencontro. Contudo a vinda de uma estrangeira
causa também a ira dos líderes da comunidade que advertem Hammed que ele poderá
ser banido do grupo. Outro reencontro que deve deixar esse homem respeitado
pela comunidade em maus lençóis é a volta de seu outro filho, Marwan (Ashraf
Barhom), um rapaz trambiqueiro e mulherengo que ganha a vida na Itália de forma
não muito honesta. Já a irmã mais velha da noiva não teve a mesma coragem de
desafiar convenções que seus irmãos e vive infeliz. Amal (Hiam Abbass) é uma
mulher com hábitos moderninhos demais para os padrões da tradicional aldeia e
acaba também desafiando o conservadorismo do marido Amin (Adnan Trabshi) ao querer
voltar a estudar agora que suas filhas já são adolescentes. Mona é muito
apegada a irmã e esta, por sua vez, tem a esperança de que a noiva tenha a vida
que ela sonhava um dia ter. Bem, corajosa a moça é. Ela está prestes a concluir
um casamento arranjado com seu primo Tallel (Derar Sliman) sem nem mesmo
conhecê-lo pessoalmente. Ele é um ator de televisão residente da parte síria da
região, portanto não pode ir até a noiva, esta que terá que se dirigir até a
fronteira sob forte calor e ostentando seu pomposo vestido, mas o casamento lhe
significa tanto, literalmente uma mudança de vida, que ela não se importa com
os sacrifícios, ainda que esteja ciente de que após o enlace matrimonial ela
será como uma propriedade do marido, não poderá mais voltar ao povoado em que
vivia e consequentemente não verá mais sua família. É uma situação no mínimo
inusitada. Uma família que vai receber um novo membro desconhecido e outra que
vai de certa forma perder para sempre um ente querido. Cada uma vivendo em uma
região separadas por grupos de soldados e o fantasma da burocracia que pode
sabotar o casório. É explorando o misto de alegria, tristeza e medo que
antecedem o casamento que o longa se apóia, além é claro dos inevitáveis
conflitos gerados pelo reencontro da família da noiva. Com personagens
verossímeis fica fácil a identificação com o longa.
É interessante observar a metáfora política que representa tal
casamento. A união de Mona com Tallel é como se fosse um pequeno passo para se
chegar a paz entre muçulmanos e judeus. Os noivos seriam como mártires dessa
caminhada pela paz, mas eles não hasteiam bandeiras. Simplesmente estão
cumprindo um compromisso acertado entre suas famílias, cada um visando seus
próprios objetivos com essa ação. A premissa poderia sugerir uma comédia leve
como tantas outras que investem na temática casamento e família, mas o contexto
sociopolítico é essencial para elevar a obra a outro nível. Além do absurdo do
contato entre as partes rivais só existir a distância e com a ajuda de
megafones, algo já visto em outros títulos sobre a região como Sob o Céu do Líbano, as bodas acabam se
transformando em uma situação constrangedora e tensa devido a problemas
burocráticos israelenses e o orgulho sírio. Um caso irônico proposto pelo
roteiro: uma união civil ameaçada pela separação gerada por conflitos
políticos, étnicos e religiosos. Seria muito chato assistir um filme que
enrolasse o espectador com uma noiva a espera de um simples carimbo para atravessar
a fronteira e seguir seu destino, por isso o longa ganha certa movimentação
graças ao elenco de coadjuvantes que ajuda a deflagrar outros ganchos
narrativos apresentando mais aspectos da cultura local e até mesmo
protagonizando situações de apelo e interesse universais como a
incomunicabilidade tão comum entre membros de um mesmo clã. Além dos problemas
familiares, chama a atenção também ver a que ponto extremo chega o conflito do
casamento. Na fronteira além dos noivos cansados na companhia de seus entes
também estão policiais que fazem a proteção do local e alguns exclusivamente
deslocados para deter Hammed, funcionários do governo e até funcionários da ONU
(Organização das Nações Unidas). Parece o samba do crioulo-doido? Mas Riklis
sabia o que estava fazendo e não deixou pontas soltas. Sem fazer
obrigatoriamente discursos panfletários quanto ao quadro que se encontra entre
a Síria e Israel ou sobre os drusos, A Noiva Síria consegue de modo leve
oferecer cultura e entretenimento sem esforço. Merece destaque o trabalho da atriz Clare Khouri que transmite com muita
naturalidade ao espectador o turbilhão de sentimentos pelos quais sua
personagem passa ao longo da trama: insegurança, alegria, medo, tristeza e
humilhação se fundem com perfeição em sua composição afinal abordar o lugar que
as mulheres ocupam nas culturas libanesa e israelense, sempre em segundo plano
e submissas, talvez seja o grande saldo desta produção que mostra que o cinema
feito em terras tão fatigadas por guerrilhas pode perfeitamente ser oferecido
de modo mais descontraído, mas sem perder o tom crítico ou documental.
Drama - 97 min - 2004
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