NOTA 8,5 A intolerância e a violência é discutida por duas vias diferentes, porém, intimamente conectadas |
Todos sabem que vivemos em uma época de
intolerância, individualismo e nos acostumamos a conviver com a violência e o
ódio. Falar que as coisas vão melhorar e que o ser humano precisa respeitar seu
semelhante viraram frases de uso religioso ou de praxe para serem espalhadas na
virada de ano. A dinamarquesa Susanne Bier procurou discutir a utopia da paz do
mundo tratando o problema em duas vertentes: dentro de um restrito núcleo e
outro mais universal. Não se pode esperar que a população mundial mude seu comportamento
se cada um não realizar a sua parte e procurar mudar também. Em Um
Mundo Melhor é uma obra que pelo título pode vender seu peixe de forma
errada. Não é uma draminha edificante qualquer. Seu conteúdo, embora transmita
mensagens aos espectadores, pode não ser do agrado de grandes platéias. Um dos
protagonistas, por exemplo, confia
que um dia os seres humanos passarão a ser mais corretos, respeitosos e éticos,
mas sabe que o caminho para chegarmos a esse paraíso na Terra não é fácil e
tampouco rápido. A trama nos apresenta à Anton (Mikael Persbrandt), um médico
que trabalha em um campo de refugiados na África, mas quando pode ter folga
volta para seu país natal, a Dinamarca. Ele tem dois filhos com Marianne (Trine
Dyrholm), de quem está se separando, embora contrariado. Elias (Markus
Ryggard), seu filho mais velho, sofre com a perseguição no colégio de um garoto
maior que ele que se aproveita para humilhá-lo como pode. As coisas mudam
quando ele conhece Christian (William Johnk Nielsen), um menino que perdeu a
mãe recentemente e agora vive com o pai, Claus (Ulrich Thomsen). Ele acaba de
ingressar no mesmo colégio que Elias, mas não se comporta como um novato na
turma. Geralmente os recém-chegados se mostram tímidos e um ótimo alvo para
chacotas e brincadeiras cruéis, mas com ele a banda toca de outra maneira. Após
defender seu novo amigo em uma confusão, Christian é agredido e como vingança
dá uma surra no agressor e o ameaça com uma faca. Assim, os garotos criam um
forte laço de amizade, mas um episódio com possíveis consequências trágicas
pode colocar essa relação em risco assim como suas vidas.
Um dos grandes ganchos deste trabalho é o questionamento feito à
cultura da violência e a idéia de mundo perfeito e justiça idealizados de forma
distinta por cada pessoa de acordo com sua educação, estilo de vida e vivência.
Christian e Anton tentam cada um a seu modo construir o tal mundo
melhor que o título sugere. O garoto retraído na verdade é rancoroso, pois acha
que a vida não foi justa com ele por causa da morte da mãe e culpa seu pai por
isso também. Sem responsabilidade alguma ele extravasa sua raiva do mundo
tentando defender aqueles que sofrem, no caso seu amigo da escola, porém,
utilizando a violência para revidar atos violentos, sejam eles verbais ou
físicos. Já o médico passa muito tempo cuidando de necessitados que vivem em
situação de miséria total. Seu ato é muito bonito, mas tanta dedicação ao
trabalho acabou não lhe proporcionando a melhor vida pessoal possível. Sua
esposa está descontente com a relação e quer se divorciar. Seu filho sofre
bullying na escola, uma prova de que a maldade já nasce com todos nós, cabe a
cada um saber lidar com ela da melhor maneira possível. Anton, sempre a favor
da paz, o aconselha a nunca revidar uma agressão e nem mesmo quando leva um
tapa do pai de uma criança com quem seu caçula brigava ele esboça uma reação
mais exaltada. Seu lema é "ele bate, você revida e assim começam as
guerras". Faz sentido, principalmente para ele que vive cotidianamente com
os resultados tristes de uma guerrilha, mas infelizmente no mundo atual soam
apenas como palavras tolas. É certo que de uma fagulha uma explosão pode
surgir, só não se sabe quando. A cineasta, que já havia tratado sobre
consequências da guerra em Brothers e sobre as diferenças entre países
do terceiro mundo e o cultuado território europeu em Depois do Casamento,
aqui junta os dois temas com um verniz que faz com que nem todos consigam
enxergar suas reais intenções. Ela foi ousada ao trazer para o mundo
infanto-juvenil problemas que afetam a humanidade como um todo e não é de hoje.
Por exemplo, a falta de respeito com seu semelhante em ambiente escolar pode
ser manifestada pela necessidade de mostrar ao outro que ele tem de sentir medo
de você e obedecê-lo. O alvo dos valentões geralmente são os estudantes
retraídos ou que demonstram não aceitar algum defeito de seu físico ou de sua personalidade.
A esses casos hoje chamamos de bullying, mas apesar da palavra não ser usual
antigamente o problema já existia. A autoridade e humilhações impostas por um
jovem a outro são tão graves e sinais claros da degradação do conceito de
sociedade quanto as ações de muitos governantes que permitem desigualdades
sociais gritantes. Até mesmo o território africano que teimamos a ter como
imagem uma região pobre e inóspita também tem sua parte onde a riqueza impera.
A comparação entre a realidade da
Dinamarca e a da África resulta em contrastes culturais gritantes, mas não se
pode negar que a violência está presente em ambos os países, cada qual
manifestando esse lado negativo de uma forma distinta, mas com uma mesma raiz.
Se as africanas grávidas sofrem nas mãos de militantes que agem por pura
maldade, o mesmo sentimento ruim acaba por reger as atitudes de jovens em outro
continente que estudam em bons colégios, vivem em casas confortáveis, não
precisam trabalhar desde cedo, porém, isso não é o bastante para eles serem
felizes. É preciso manter em regime de submissão quem for possível e estes
reagem também de forma violenta, uma forma torpe de buscar certa dignidade e
seu lugar na sociedade. Assim Susanne discute estes temas mostrando o lado
universal da coisa e sua faceta mais privada. O personagem Anton mostra sua
visão mais ampliada do conflito enquanto as crianças representam o microcosmo
do problema. Dentro do colégio parece que uma briga é algo momentâneo e sem
grandes consequências, mas se ninguém coloca limites pode se tonar rotineiro e
ditar o caráter destes jovens no futuro. Claro que o médico civilizado da
história não é nenhum anjo de candura, também tem seus erros. Ele pode não
recusar prestar socorro a um assassino necessitado, mas ele próprio fazia mal à
esposa, esta que acabou decidindo colocar um ponto final na relação. O roteiro
de Anders Thomas Jensen é bem realista e acerta em cheio ao mostrar que não
existem heróis, ninguém é completamente do bem ou perfeito, enfim que o ser
humano está condenado a viver com a constante dualidade. Quando vista sem
prestar muita atenção realmente esta obra parece não dizer nada, mas é preciso
se ater a narrativa para encontrar a força deste drama. Os personagens são
verossímeis e com perfis muito interessantes a serem analisados. Em Um Mundo Melhor é um daqueles
filmes feitos para momentos de concentração e para platéias que gostam de reflexão,
só assim para compreender as conexões que Susanne desejou estabelecer entre um
país miserável e outro elitizado que vive de fachada, pois as mazelas também
estão presentes por lá. Não adianta separar como área de negros e a outra de
caucasianos de cabelos e olhos claros. Todos estão juntos em um mundo
turbulento e perigoso, mas o desejo de um possível mundo melhor permeia nossos
sonhos. Como conseguir isso? Bem, tenha certeza que este filme pode levá-lo a
refletir sobre, mas não espere respostas prontas.
Vencedor do Oscar de filme estrangeiro
Drama - 119 min - 2010
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