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sábado, 17 de abril de 2021

O AUTO DA COMPADECIDA


Nota 9 Cortando excessos, transposição de série de TV para o cinema é ainda mais divertida 


Antes do diretor Guel Arraes levar multidões ao cinema para curtir o inovador (pelo menos na parte técnica e visual) Lisbela e o Prisioneiro, este mesmo profissional peitou a indústria e a crítica ao reabrir a discussão sobre cinema aliado à televisão. Já houve críticos que chegaram a afirmar que o Brasil não investia em cinema de qualidade e glamoroso porque tal estética o público tinha diariamente e de graça com as novelas da Rede Globo, a mesma empresa que lançou no final da década de 1990 seu braço cinematográfico com o objetivo de financiar produções com o elenco da casa e ajudar na divulgação de projetos menores, mesmo que eles não tivessem um ator global envolvido. Como nem tudo cai do céu, o início da Globo Filmes não foi fácil e os trabalhos mais bem sucedidos eram protagonizados por Xuxa e Renato Aragão, artistas com público cativo, mas projetos como Orfeu e Bossa Nova não fizeram jus aos seus investimentos. Eis que em meados de 2000 o público brasileiro foi surpreendido com o lançamento do longa O Auto da Compadecida, mesmo título de uma microssérie da Globo que fez sucesso um ano antes. Certamente muita gente foi pega de surpresa ao ver uma versão compactada da série ao invés de uma produção inédita. Uma estratégia escancaradamente do tipo caça-níquel? Imediatamente ficou comprovado que não e o passar dos anos só exalta ainda mais a ideia. 

Há anos muitos diretores sonham com a parceria entre TV e cinema visando uma agilidade maior para as pré e pós-produções, tempo de filmagens e principalmente divulgação. Arraes pensou longe e logo que começou a trabalhar na série já a imaginava também no escurinho do cinema e por isso adotou a película para as gravações, técnica hoje amplamente utilizada até mesmo em novelas. Baseado na obra de Ariano Suassuna, o longa acompanha as aventuras e desventuras de Chicó (Selton Mello) e João Grilo (Matheus Natchergaele). O primeiro é um fanfarrão que só pensa em se divertir e se dar bem, mas quando o bicho pega ele mostra que é o mais covarde dos homens de sua terra. O outro é um sertanejo pobre e de bom coração, mas é mentiroso e também adora se meter em encrencas. Para sobreviverem em Cabeceiras, uma árida e pequena cidade nordestina, Grilo e Chicó se unem para lutar pelo pão de cada dia e para tanto inventam mil e uma histórias para enganar os moradores ricos e poderosos da região. Em algumas das últimas confusões criadas pela dupla acabam se envolvendo o padre João (Rogério Cardoso), a fogosa Dora (Denise Fraga), o padeiro da cidade Eurico (Diogo Vilela), o cangaceiro Severino (Marco Nanini) e um bispo ganancioso (Lima Duarte). Por uma fatalidade, Grilo acaba falecendo e precisará acertar as suas contas com Jesus Cristo (Maurício Gonçalves) para não cair nas mãos do Diabo (Luís Mello), mas a Nossa Senhora (Fernanda Montenegro) irá interceder na história para tentar dar uma segunda chance ao sertanejo que com sua astúcia e lábia não deixará de negociar sua permanência no mundo dos vivos nem mesmo com o coisa ruim.


 A maioria das cenas na época das gravações da série foram realizadas estrategicamente já pensando no futuro filme, assim os cortes privilegiavam as situações em torno dos protagonistas, não ficando estranha a ausência de personagens secundários ou eventos da obra original. O roteiro do próprio Arraes em parceria com o casal Adriana e João Falcão não perdeu sentido algum quando transposto para um novo formato. O longa privilegiou basicamente o meio e o final da série, excluindo trechos iniciais menos importantes ou redundantes . E quem pensa que foi demorado o processo de montagem do filme se engana. O próprio diretor se encarregou de em uma única tarde liquidar o serviço, prova de sua convicção de que seu trabalho renderia um bom longa-metragem. É provável que boa parte do público que acompanhou pela televisão também foi prestigiar a obra nos cinemas, assim como os avessos à cultura de massa não resistiram ao burburinho e foram conferir em tela grande o que gerava tantos comentários entre populares e intelectuais. Naquela época o cinema brasileiro já estava esquentando os motores para vários lançamentos para os anos seguintes e cada vez mais estava encontrando espaço nas salas de exibições dos shoppings, fugindo assim do circuito alternativo e restrito que antes lhe era reservado. As aventuras de Chicó e João Grilo acabou levando mais de 2 milhões de pessoas aos cinemas, uma marca considerada improvável inicialmente.

O brasileiríssimo texto de Suassuna escrito em 1955 já havia ganhado outras adaptações, principalmente no teatro, sua primeira casa, mas o cinema também já havia se beneficiado de tal conto. Na década de 1960, Antônio Fagundes e Regina Duarte participaram de A Compadecida, título praticamente esquecido de nossa cinematografia que em nada alavancou a carreira dos citados atores. Duas décadas depois, foi a vez de Renato Aragão e seu saudoso grupo de trapalhões adaptar a peça em uma época em que a trupe alcançava enormes bilheterias e seus filmes não eram malhados pela crítica, ao menos não tanto como os posteriormente lançados pelo humorista em carreira solo. A terceira adaptação, a de Arraes, é a mais bem conceituada e até o que poderia ser considerado um defeito neste caso virou elogio. As cenas finais, do julgamento de João Grilo, poderiam ter sido feitas em um elaborado cenário que representaria o céu ou qualquer outro lugar onde um espírito esperaria a resposta sobre qual caminho a seguir. Pelo dispendioso custo da produção, optou-se pela criatividade em primeiro lugar e assim o ápice da trama é desenrolado em uma modesta igreja. Outro diferencial deste trabalho é a introdução da personagem Rosinha (Virginia Cavendish), a peça que faltava para trazer certo romantismo à trama. No texto original ela só é citada e foi um risco adicioná-la em carne e osso, afinal ela aparece para balançar o coração de Chicó e uma das principais característica do personagem é não ter preocupações de fundo emocional. 


A dupla de divertidos trambiqueiros dividem as atenções proporcionalmente. Natchergaele ganhou a simpatia do público com seu cativante e falastrão personagem e Mello alcançou definitivamente o status de grande ator que tanto almejava. Todavia, todo o elenco tem seu momento para brilhar em O Auto da Compadecida,  uma obra que mesmo repetida já várias vezes na televisão ainda consegue captar a atenção do espectador. Basta ouvir a agradável música-tema feita com instrumentos tipicamente nordestinos que você já está tentado em dar uma espiadinha. Infelizmente o longa não seguiu carreira fora do país por causa da dificuldade em se traduzir ou dublar a maior parte dos diálogos repletos de expressões estritamente regionais e de agilidades impressionantes. Todavia, no Brasil seu sucesso e sua importância para o cinema nacional ninguém contesta. A produção abriu caminho para uma inversão de padrões. Ao invés do cinema ceder material para a TV, a telinha poderia também suprir as telonas, ainda que pouco tempo depois a readaptação da microssérie Caramuru – A Invenção do Brasil, feita para comemorar os 500 anos de descobrimento do país, tenha frustrado em temos de repercussão e bilheteria, mas essa é uma outra história.

Comédia - 104 min - 2000

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2 comentários:

  1. filmes nacionais ainda as pessoas torçem o nariz, ainda ficam com crenças das pornochanchadas e recheados de palavrões, ao contrario cinema nacional aos poucos tem fincado sua firmação que veio para ficar e melhorar sempre, o auto é exemplo disso, é um filme leve, astuto e até teólogico, a cena da Fernanda Montenegro é arrebatadora...

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  2. O Auto da Compadecida foi uma aposta arriscada em transformar uma série de tv em um longa- metragem para os cinemas,o que acabou funcionando de maneira brilhante,trouxe um timing cômico perfeito,interpretações impecáveis,uma crítica social bem embasada,uma direção competente,é um raro exemplo de comédia que é genuinamente engraçada sem apelar para um humor escrachado que permeia o cinema nacional nos tempos atuais.

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