Nota 6,5 Longa ousa ao usar canibalismo para criticar as sociedades, mas público rejeita temática
Todos os anos muitos filmes com pegada de horror são produzidos, mas
entre refilmagens e sequências, os poucos títulos inéditos que sobram acabam
sumindo no mapa ou curiosamente se destacando pelos seus repetitivos roteiros.
Porém, quando alguém tenta fazer algo diferente o público acaba rejeitando como
é o caso de Mortos de Fome, longa do final dos anos 90 que passou em
brancas nuvens pelos cinemas, aterrissou na surdina nas locadoras e nem na
televisão encontrou espaço. O repúdio é compreensível. Existem produções muito
difíceis de serem classificadas em um gênero específico e aqui está um bom
exemplo. Embora vendido como filme de terror, o tema central ser o canibalismo
e apresentar algumas cenas repletas de sangue e restos mortais, o longa não
assusta de forma surpreendente ou tradicional. Apesar do título também não é
comédia, nem de humor negro embora nesse quesito este produto seja um prato
cheio. Drama poderia ser uma rotulagem válida visto que a obra explora as
dificuldades de um grupo de homens em uma época conturbada, mas passa longe de
levar o espectador as lágrimas. No fundo esta é uma produção alternativa que
reúne um elenco respeitável e características de diversos gêneros, mas uma obra
que sofre para achar seu público. O fato é que este trabalho da cineasta
inglesa Antonia Bird, que antes havia causado certo burburinho com o polêmico O Padre, não é de fácil digestão. O
roteiro de Ted Griffin acompanha o Capitão John Boyd (Guy Pierce), condecorado
por sua bravura nas lutas na fronteira com o México, porém, mais tarde
decepcionando seus superiores e assim sendo transferido para um isolado forte
na Califórnia em 1847 que servia de assistência para os viajantes que
atravessavam a perigosa região das Serras Nevadas Ocidental. Ele passa a
conviver então com um excêntrico grupo formado pelo chefe da liderança do
local, o Coronel Hart (Jeffrey Jones), alguns oficiais, como o religioso
Toffler (Jeremy Davies), o esquentadinho Reich (Neal McDonough), o viciado em
ervas alucinógenas Cleaves (David Arquette) e o alcoólatra Knox (Stephen
Spinella), e com dois ajudantes, os irmãos indígenas George (Joseph Runningfox)
e Martha (Sheila Tousey).
Durante uma noite muito fria e com nevascas, um estranho homem aparece
no forte tentando se recuperar de um congelamento que quase tirou sua vida.
Colquhoun (Robert Cralyle) é um sobrevivente de uma expedição na qual ele e
seus companheiros acabaram presos em uma caverna por vários meses devido a uma
violenta tempestade de neve. Ao grupo que o acolheu, este estranho homem conta
que para conseguir sobreviver acabou literalmente tendo que devorar seus
colegas e Hart resolve formar uma equipe de resgate para averiguar sobre o
misterioso relato e se ainda existiriam vivos na tal caverna, porém, nem
imaginavam que descobririam terríveis segredos a respeito de Colquhoun. A
partir de então todos precisam lutar por suas vidas sendo ameaçados pela
possível presença de um canibal entre eles. A base do roteiro surgiu através de
uma lenda indígena sobre um grupo específico de homens que acreditavam que
comendo a carne de outros seres humanos, geralmente inimigos, conseguiriam
reter para si a força e o espírito destes corpos, assim tornando-se pessoas
capazes de curarem suas próprias doenças e ferimentos. No longa o canibalismo é
visto como uma única fonte de sobrevivência em meio a um ambiente hostil em que
cada novo despertar é uma vitória. A bizarrice até que faz sentido e a própria
diretora na época do lançamento afirmou que sua intenção real não era chocar
ninguém e sim dar uma nova roupagem aos elementos típicos das produções com
vampiros. Diga-se de passagem, o canibalismo para ela neste caso serve como uma
metáfora a dinâmica das sociedades nas quais as pessoas acabam pisando umas nas
outras para conseguirem o que querem e nem os pobres poupam seus semelhantes em
mesma situação (lembrando que o filme foi finalizado em 1998, mas os problemas
que alfineta continuam atuais). Até os perfis bem delineados dos personagens
servem como uma forma da cineasta fazer críticas, além de ressaltar os
objetivos do protagonista, um homem ressentido com seu passado e que precisa
vencer desafios e a crueldade humana para reaver sua honra. Para quem se
impressiona facilmente com cenas sanguinolentas ou viscerais, Mortos
de Fome obviamente não é recomendado, mas para quem gosta de buscar um
algo mais por trás das imagens aqui está uma boa pedida. A excelente parte
técnica, incluindo a fotografia que imprime a dose de suspense necessária à
trama, ajuda a compor um cenário realista de uma época e um espaço em que os
humanos eram praticamente obrigados a se comportar como animais, mas não
existia outra saída. Era assim ou aceitar a morte. Realmente há relatos de
fatos verídicos semelhantes aos narrados nesta obra e o cinema já explorou o
tema em outras oportunidades, sempre com repulsa semelhante por parte do
público infelizmente. De qualquer forma, uma opção que merecer ser vista por
todos aqueles que se autointitulam cinéfilos. Filme semelhante talvez não
exista.
Terror - 100 min - 1998
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