Nota 6 Embora com furos na trama e aspecto envelhecido, longa ganha pontos com elenco afiado
O cinema nacional reconquistou definitivamente a confiança dos brasileiros a partir da década de 2000 quando começaram a surgir alguns sucessos esporádicos, mas a consolidação veio mesmo com a consagração internacional de Cidade de Deus e trabalhos como Olga e Carandiru que levaram milhões de pessoas às salas de exibições. É uma pena que só mesmo produções com uma grande campanha de marketing atraiam os espectadores, assim muitos filmes passam em brancas nuvens. É da safra citada que pertence O Vestido, dirigido por Paulo Tiago, de Policarpo Quaresma – Herói do Brasil, e roteirizado pelo próprio em parceria com Haroldo Marinho Barbosa. Baseado no poema "Caso do Vestido", um dos últimos escritos de Carlos Drummond de Andrade, a dupla teve bastante trabalho para transformar em uma história com começo, meio e fim os versos da linguagem poética. Críticas negativas certamente não faltam a este trabalho que só ganhou um mínimo de destaque pelo fato de Gabriela Duarte ter ganho o prêmio de Melhor Atriz no Festival de Cinema Ibero-americano de Huelva, uma lembrança que gerou comentários maldosos já que na época ela ainda não tinha nem mesmo seu trabalho em novelas reconhecido. Ela divide o protagonismo com Ana Beatriz Nogueira que vive Ângela, uma mulher que relembra às filhas uma triste história de seu passado que envolve também seu marido e um vestido que as meninas encontram no porão de casa.
Ângela era uma mulher feliz, uma professora querida pelos alunos e vivia um casamento harmonioso com Ulisses (Leonardo Vieira), um homem honesto e dedicado à família que muda completamente seu comportamento e ideais com a chegada de Bárbara (Duarte), uma jovem moderninha que vai ao interior de Minas Gerais para passar alguns dias com o companheiro Fausto (Daniel Dantas). Pouco a pouco, ela vai se aproximando desta família tradicional a ponto de Ângela lhe considerar uma grande amiga e presenteá-la com um vestido que seu marido mandou fazer para ela e que julgou cair melhor na moça. Tal roupa então funciona como uma espécie de objeto amaldiçoado, como se despertasse a ira e a luxúria, tanto que Ulisses ao ver a forasteira com o traje imediatamente fica encantado e se entrega ao seu poder de sedução. Aparentemente satisfeito com seu casamento, no fundo o rapaz não aguentava mais a mesmice de sua vida e enfrentava problemas financeiros. Atordoado, não consegue reprimir seus desejos e acaba cedendo, porém, Bárbara só aceita passar uma noite com ele caso a própria Ângela peça para ela fazer isso e admita ao marido que a ideia de casamento perfeito é pura ilusão, o que acarretaria o rompimento do casal. Até aí provavelmente o público se identifique com a personagem traída, uma mulher simplória e até certo ponto ingênua, uma legítima representante da mulher do povo, enquanto sua algoz é o arquétipo da mulher liberal e da cidade grande.
O segundo ato é marcado por mudança de ares e de tons enfocando a relação entre Bárbara e Ulisses que partem para outra cidade fazendo juras de amor e planos para mudarem de vida, mas as coisas não saem como planejadas. Se antes Duarte e Vieira mostravam-se apáticos, depois eles encontram a dramaticidade necessária para extravasar a revolta que seus personagens sentem por terem dado passos em falso. O rapaz não consegue esquecer a esposa e a jovem se sente humilhada por não ter conquistado seu amor completamente e se entrega a loucura propiciada pelo alcoolismo. Não fica claro e há informações dispares a respeito da época em que a trama se passa. O texto original é datado de 1945, mas alguns momentos passam a ideia de contextualização com o exato período das filmagens. No entanto, a julgar pelas roupas e por certo baile que ocorre como marco de divisão da trama, a hipótese da narrativa ser desenvolvida em meados da década 1950 é a mais coerente, embora uma citação a uma canção de Caetano Veloso não caberia à época. Técnica e esteticamente, o longa parece um produto de um passado longínquo do cinema nacional, ainda que seja provável que a grande maioria das cidades de interior ainda guardem muito da aura de antiguidade. Tais dúvidas são conflitantes e não colaboram para a compreensão do enredo por completo.
A sensação de algo envelhecido não se deve exclusivamente a melancolia das locações ou aos detalhes e objetos cênicos, mas também a própria forma de filmar e aos diálogos bem diversos dos padrões do cinema nacional nos idos de 2004. Na direção, Tiago não inova em seus enquadramentos e tampouco na edição, utilizando cortes secos bem típicos de nossas antigas produções. Entretanto, o problema mais gritante talvez seja o texto em si e a forma como ele é trabalhado em cena. A intenção era fazer algo teatral e assumidamente melodramático, mas o cineasta exagerou na dose, ao menos no primeiro ato que faz a apresentação dos personagens e conflitos. Os diálogos são muito certinhos, solenes e não soam naturais, mas o pior mesmo são as citações a nomes famosos do mundo das artes e da cultura, o que acentua o tom artificial dos diálogos, afinal ninguém anda por aí com versos e prosas na ponta da língua. Licenças poéticas e criativas à parte, o amor brutal de Bárbara por Ulisses parece ter resquícios de obras de Nelson Rodrigues e traz algumas sutis reviravoltas que seguram bem a atenção do espectador com destaque para Duarte que praticamente vive duas personagens de características opostas, chamando a atenção por despir-se da imagem de moça recatada que construiu com seus trabalhos em novelas até então, inclusive aceitando fazer cenas de nudez.
O Vestido é mais um título que enriquece a lista de produções nacionais que são cheias de boas intenções, mas se atropelam nos próprios objetivos e sofrem com as críticas negativas que se alastram com uma velocidade impressionante. A transição do poema para uma narrativa sólida, linguagens bem distintas, necessitou que os roteiristas fantasiassem um pouco mais do que o material original sugeria, assim ocasionando alguns furos que passam quase que despercebidos quando nos deixamos envolver pelo plot principal, embora as quase duas horas de duração trabalhem contra o sucesso do produto. Cerca de meia hora a menos seria benéfico e daria tempo suficiente para contar esta história que no fundo trabalha com o tema da insatisfação do ser humano. Todos querem viver o amor e a paixão, o tradicional e a novidade, mas dependendo dos caminhos que seguimos para tanto o feitiço volta contra o feiticeiro.
Drama - 121 min - 2003
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